50 anos de Stonewall e o início de uma revolução de costumes
Foto: Diana Davies/New York Public Library/Divulgação
Em 28 de junho de 1969, a comunidade LGBT+ de Nova York, Estados Unidos, decidiu enfrentar a polícia que, sistematicamente, fazia batidas nos bares para expulsar gays, lésbicas, bissexuais, pessoas trans e quem mais não estivesse enquadrado no comportamento considerado “normal”. O embate aconteceu na frente do bar Stonewall Inn, em Greenwich Village. A data se tornou um marco na luta contra a discriminação e pelos direitos da população LGBT+. Lembrar os 50 anos de Stonewall é ainda mais significativo diante dos retrocessos de políticas públicas e da incitação do ódio por parte de governantes.
Stonewall é resultado de um processo histórico, explica Célio Golin, coordenador do Nuances – Grupo pela Livre Expressão, criado em 1991 – o primeiro no Rio Grande do Sul a viabilizar a luta pelo respeito à diversidade. “Em 1910, já havia pessoas discutindo essa pauta na Europa. Após a Segunda Guerra Mundial, esse movimento foi retomado, inclusive nos Estados Unidos, como reflexo do Holocausto”, conta. Na Nova York de 1969 era proibido ter bares e boates LGBT+. As pessoas não podiam usar roupas que não fossem do seu gênero correspondente. A comunidade LGBT+ percebeu a necessidade de sair dos guetos e ir para as ruas. Eram tempos de revolução e de busca de direitos: de estudantes, em maio de 1968, das mulheres, da população negra.
No Brasil, o processo foi mais lento. “Até 1980, a população LGBT+ era associada a doenças”, diz Golin. A Aids impactou diretamente os gays e tirou muita gente do armário. Veio a Constituição de 1988, e decisões judiciais firmaram conquistas. O respeito à diversidade passou a ser discutido não mais sob o enfoque da patologia, mas da cidadania. Os grupos ocuparam espaços políticos e ampliaram a representatividade, inclusive na mídia. As Paradas de Orgulho LGBT+, frutos de Stonewall, cresceram, e os donos do capital perceberam aí um filão de mercado. As notícias sobre a Parada LGBT+ que levou às ruas de São Paulo em 23 de junho deste ano milhões de pessoas, por exemplo, enfatizaram a presença de turistas com poder aquisitivo que lotaram hotéis e trouxeram dinheiro ao comércio. “A conquista de cidadania atingiu gays e lésbicas da classe média pela ideia do consumo”, assegura Golin. “Mas, nas periferias, as bichas continuam marginalizadas e as travestis, apesar de se organizarem politicamente, ainda são as mais vulnerabilizadas”.
Uma das prioridades do coletivo de entidades LGBT+/RS, encarregado da Parada Livre de Porto Alegre, que acontece no final do ano, é ampliar a parceria com as periferias onde já existe um movimento muito forte de resistência associado à luta contra racismo e misoginia. Em 2019, a Parada Livre pretende apoiar um evento LGBT+ da Lomba do Pinheiro e a Parada da Vila Conceição. Também quer promover atividades culturais, feiras e bailes envolvendo um festival de slam (poesia falada) de LGBT+.
Criminalização da LGBTfobia representa um avanço, mas não basta
O discurso de ódio, que cresceu, sobretudo, depois da eleição presidencial em 2018, acendeu uma luz de alerta. Ao divulgarem notícias falsas como o “kit gay” e a “mamadeira de piroca”, os setores da extrema-direita ressuscitaram o moralismo e o imaginário social. Por outro lado, em 13 de junho de 2019 o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, a LGBTfobia, seja considerada crime com punição pela Lei 7716/89 (Lei do Racismo).
Célio Golin avalia que a decisão do STF representa um empoderamento frente a setores conservadores, mas não basta. É preciso assegurar a presença do Estado e as políticas sociais, salienta, porque reformas como a trabalhista e ameaças de cortes no SUS também irão atingir a população LGBT+. Um desafio é, portanto, vigiar os direitos conquistados para evitar retrocessos, concorda Isidoro Rezes, especialista em Responsabilidade Social e Sustentabilidade, integrante do Fórum LGBT+/RS e um dos fundadores da ONG Outra Visão. “Quando todo mundo entender que essa é uma luta de todas e todos, mais avanços virão”, afirma. Rezes e seu marido, Ricardo Pecin Couto, já falecido, foram o primeiro casal a obter na Justiça o reconhecimento de união estável homossexual em 2001, 10 anos antes da decisão do STF que validou a união homoafetiva. A luta dos dois começou em 1995, quando foram ao Judiciário demandar que Rezes fosse incluído no plano de saúde do companheiro.
Portanto, não é suficiente ter a legislação: “Os movimentos têm que tensionar para fazer cumprir as leis, e é muito importante ter políticas públicas específicas para a população LGBT+”, ressalta a psicóloga Teresa Cristina Bruel dos Santos, integrante do Coletivo Feminino Plural, que defende os direitos de mulheres e meninas, e membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos. “Se uma mulher fez a cirurgia de transexualização, vai ser atendida por uma ginecologista ou por um urologista?”, questiona. Mas Cristina sugere que não se pode esperar apenas pelo Estado: as pessoas também devem militar cotidianamente para mudar essa realidade na micropolítica, ou seja, nos espaços mais restritos da família, da sala de aula, e nas demais relações interpessoais.
No dia 28 de junho, a Secretaria de Saúde de Porto Alegre anunciou o lançamento da Política Municipal de Saúde Integral LGBT+, que deverá ampliar o projeto Transdiálogos, desenvolvido desde 2017, e qualificar o atendimento dessa população.
Foto: Igor Sperotto
População trans é ainda mais vulnerável
O Brasil é o país em que mais matam pessoas LGBT+ no mundo. “As políticas públicas estão aquém do necessário. É preciso uma retomada de ações para que a revolta que começou em 1969 possa dar um alento pra gente”, afirma Keila Simpson, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e coordenadora do Centro de Promoção e Defesa dos Direitos LGBT da Bahia. “Resistir nesses 50 anos, vindo de onde se veio, com o reconhecimento da sociedade e parcerias, isso é positivo”, diz.
A assistente social Lins Robalo, coordenadora do Movimento Social Organizado LGBT+ Girassol Amigos na Diversidade, existente há 12 anos em São Borja (RS), acrescenta: as pessoas trans precisam de mais espaços de qualificação profissional. As identidades sexuais e sociais ainda são muito fragilizadas, e essa fragilidade impede a empregabilidade, e que essas pessoas prossigam nos estudos.
Através de parcerias com universidades e poder público, o Movimento Girassol tem conseguido fomentar a cultura e ampliar o atendimento de saúde para a população LGBT+. Sua história está registrada no livro Diversidade de Gênero: Vozes e Identidades que falam sobre as construções LGBT+ na fronteira, que está sendo lançado neste ano.
No segundo semestre de 2019, o Girassol deverá abrir o primeiro Ambulatório de Atenção Integral LGBT+ da região com financiamento do Fundo Positivo e da gestão pública. Serão atendidas ali demandas de saúde respeitando as particularidades das diversidades, com serviço de endocrinologia, assistência social, psicologia.
“A gente trabalha com a qualificação de lideranças jovens e na perspectiva de Redução de Danos, com prevenção de HIV/Aids, Hepatites Virais e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis, do uso de álcool e outras drogas. Está tudo interligado”, informa Lins. Com esse trabalho, ela percebe que a juventude tem encontrado um novo sentido de identidade e pertencimento.
Lins é uma mulher trans negra e de periferia. “Gosto de marcar de onde emerge a minha fala. Tive uma família que me protegeu. Tenho duas especializações, um Mestrado, sou servidora pública concursada, e isso me diferencia nesse contexto”, orgulha-se. Para Lins, a proteção da família e o acesso à educação fizeram com que emergissem suas potencialidades: “A educação realmente salva as pessoas. Eu também sofri preconceito na escola, mas tive pessoas que me conduziram para onde estou hoje”.
PEQUENO GLOSSÁRIO
LGBT: Sigla para lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, aprovada em uma conferência nacional sobre direitos humanos e políticas públicas (2008). A sigla varia, por isso se utiliza LGBT+ para abarcar todas as variações.
BISSEXUAL: Pessoa que se relaciona sexual e/ou afetivamente com ambos os gêneros.
CISGÊNERO: É a pessoa que se identifica com a identidade de gênero do nascimento.
GAYS/HOMOSSEXUAIS: Homens que se relacionam afetiva e sexualmente com outros homens.
HETEROSSEXUAL: Pessoa que se relaciona sexual ou afetivamente com pessoas de gênero diferente do seu.
HOMEM TRANS/MULHER TRANS: Quando uma pessoa nasce com características que fazem seu gênero ser lido como masculino, mas se identifica com o gênero feminino, é uma mulher trans. Se nasce com características que fazem seu gênero ser lido como feminino, mas se identifica com o gênero masculino, é um homem trans.
LÉSBICAS: Mulheres que se relacionam afetiva e sexualmente com outras mulheres.
LGBTFOBIA: Termo usado para englobar sentimento de ódio, medo ou repulsa a pessoas LGBT+.
PESSOAS TRANS: Expressão usada para se referir a travestis, transexuais e transgêneros.
TRANSGÊNERO: Grupo que engloba todas as identidades e expressões de gênero que fogem ao padrão cisnormativo.
TRAVESTI: Designa pessoas que se assumem e/ou se identificam com características físicas, sociais e culturais de gênero diferente do que lhe foi atribuído no nascimento.