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As famílias partidas da Vila Nazaré

A Vila Nazaré fica na linha da futura extensão da pista do Aeroporto Salgado Filho e a execução da obra depende da remoção de 1,3 mil famílias
Por Matheus Chaparini / Publicado em 8 de agosto de 2019
A Vila Nazaré fica onde está prevista linha da pista da nova configuração do aeroporto Salgado Filho, e a execução da obra depende da remoção de 1,3 mil famílias

Foto: Leonardo Savaris

A Vila Nazaré fica onde está prevista a linha da pista da nova configuração do aeroporto Salgado Filho, e a execução da obra depende da remoção de 1,3 mil famílias

Foto: Leonardo Savaris

Após anos de tentativas sem sucesso, a obra de extensão da pista do aeroporto Salgado Filho ganhou andamento com a empresa alemã Fraport. A Vila Nazaré fica na linha da pista, e a execução da obra depende da remoção de 1,3 mil famílias. O número se baseia em um cadastro feito pela prefeitura de Porto Alegre em 2010. Moradores acreditam que sejam mais de duas mil. Cerca de cem já saíram do local. Para quem ficou, reina a incerteza. A Justiça suspendeu as demolições até a audiência marcada para o dia 8 de agosto, em função de uma Ação Civil Pública ajuizada por Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública da União (DPU), Ministério Público Estadual (MPRS) e Defensoria Pública Estadual (DPE). Os órgãos querem garantias de que os moradores serão instalados em condições dignas e que as remoções só serão retomadas após o cadastramento de todos.

Erondina nunca viajou de avião nem pisou no saguão do aeroporto Salgado Filho. “Só em sonho”, brinca. Chegou à Vila Nazaré na primeira metade da década de 1970. Antes, morava em uma pequena vila nas proximidades da Avenida Plínio Brasil Milano, que foi removida. Ela teve de migrar, com outros moradores, para um terreno na Zona Norte, onde morava meia dúzia de famílias. Naquele chão ergueu sua casa e teve duas filhas, que vivem ali até hoje.

No dia 24 de junho, Erondina Soares Azevedo foi uma das primeiras moradoras retiradas da Vila Nazaré e transferidas para o loteamento Senhor do Bom Fim, a pouco mais de 3 km de distância. As duas filhas ficaram.

No terreno onde mora Andreia Azeredo, sobraram uma casa, numerada em tinta verde e marcada com um “R” (de Remoção), e os escombros do imóvel demolido. Em meio aos entulhos, é possível identificar metade da cozinha e a sala de estar, sem teto, mas ainda com um sofá.

A casa fica no acesso 6 da vila. A irmã de Andréia, Maria Juçara, mora no acesso 5. Sua casa também foi numerada. Mas não ganhou um “R”.

A situação da família Azeredo é o retrato da Nazaré: partida em três.

Os moradores removidos serão reassentados em dois pontos distantes entre si em mais de 6 km. O loteamento Senhor do Bom Fim, no bairro Sarandi, onde mora Erondina, deve receber 364 famílias. Outras 936 serão enviadas para mais longe, ao loteamento Irmãos Maristas, na Vila Timbaúva, bairro Rubem Berta.

A prefeitura pretende concluir as remoções até o fim do ano. Há ainda uma pequena parte da vila que fica. São as áreas denominadas de Pepino e Lampião.

Concebido e travado há pelo menos dez anos, o projeto de ampliação da pista do aeroporto Salgado Filho finalmente começou a andar quando a Fraport venceu a concessão, em 2017.

A pista ganhará mais 920 metros, chegando a 3,2 km. A obra é necessária para ampliar a capacidade do transporte de carga do Salgado Filho. E, para tanto, é necessária a retirada da Vila Nazaré.

No dia 21 de junho, foram retiradas as primeiras famílias. A remoção não é feita por áreas. Andando pelas ruas da Nazaré, a cada quadra há uma casa demolida. E os escombros ficam no local. “Eles derrubam e deixam tudo. É horrível de ver. Uma história de vida construída dentro da vila”, lamenta Ilson Cardoso da Silva, marido de Andreia.

A empresa apresentou um plano de remoção no valor de R$ 29 milhões. A novidade que trouxe esperança aos moradores foi a entrada de órgãos públicos estaduais e federais na discussão. O MPF estima que o reassentamento da Nazaré custe à Fraport Brasil R$ 146 milhões. O valor é calculado com base nos estudos que precederam a concessão.

“Aqui vai ser meu fim”

As famílias partidas da Vila Nazaré

Foto: Leonardo Savaris

No terreno onde moram Andreia Azeredo e o marido, sobraram uma casa, numerada em tinta verde e marcada
com um “R” (de remoção), e os escombros do imóvel demolido

Foto: Leonardo Savaris

Quando os Azeredo chegaram, eram poucas casas e muito mato, recorda Andreia. “Nasci aqui, neste terreno, em 1975. Nunca saí deste lugar.”

Com o tempo, mais famílias se instalaram no terreno e construíram o que hoje é a Vila Nazaré. O convívio ao longo dos anos criou uma relação de comunidade entre os moradores mais antigos.

“Um cuida a casa do outro. Se eu botar roupa na cerca e chover, a vizinha entra, recolhe e guarda. É tipo uma família”, afirma.

O reassentamento de Erondina alterou a rotina da filha Andreia. Ela divide com a irmã e uma sobrinha os cuidados. “Eu tenho que sair às seis e meia. Vou com a minha filha para lá, arrumo o café para a mãe, limpo a casa e faço almoço. Depois, trago a guria pro colégio, do outro lado da Sertório, e volto para lá de novo.” O trajeto de ônibus dura apenas dez minutos. Mas, no fim da semana, representa um gasto de R$ 140 em passagem.

Ela reconhece que as condições de vida no local não são as ideais. O esgoto da casa entupiu e corre a céu aberto. O mesmo acontece em outras.

Mesmo assim, ela nunca quis deixar a vila. Até o dia em que a mãe saiu. “Eles fizeram um jogo bem esquematizado. Se ela não tivesse saído, óbvio que a gente ia botar o pé e ficar. É uma história que a gente montou aqui, entendeu?”

“A minha casa está na linha da pista”

As famílias partidas da Vila Nazaré

Foto: Leonardo Savaris

Oseas Oliveira Santos e sua família vivem da produção e venda de pães artesanais comercializados na região

Foto: Leonardo Savaris

Morador da Vila Nazaré desde a infância, foi lá que Oseas Oliveira Santos fez sua clientela. Há seis anos, ele e a esposa produzem pães, bolos e salgados, que ele vende de bicicleta na vila.

“Saí com a cara e a coragem, gritando na rua. Agora eu tenho uns quantos clientes fixos, alguns até me chamam pelo whats”, lembra. O negócio sustenta o casal e os dois filhos de 15 e 20 anos.

Com o início da remoção, as vendas caíram. Parte da clientela se mudou para o loteamento, e para Oseas, aumentou a distância percorrida e reduziu as vendas. Enquanto se esforça para manter o negócio, ele convive com a incerteza em relação ao próprio futuro. “A minha casa está na linha da pista, mas eu não sei quando eu vou sair. Ainda não fui chamado.”

“Nossa ideia é realocar todos juntos na região”

O movimento dos moradores aponta como sugestão a realocação das famílias em uma área próxima

Foto: Leonardo Savaris

O movimento dos moradores aponta como sugestão a realocação das famílias em uma área próxima

Foto: Leonardo Savaris

Daniel Alex da Silva Dutra é presidente da ONG Criança Feliz Nazaré, que realiza atividades de lazer na comunidade. A ONG reivindica melhores condições de reassentamento para os moradores. “Não estamos contra o aeroporto, mas eles têm 1,3 mil casas, nós temos mais de 2 mil famílias. Não tem casa para todo mundo”, declara.

A instituição recebe apoio do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST) e da ONG Amigos da Terra. O movimento aponta como sugestão a realocação das famílias em uma área próxima.

“Nossa ideia é realocar todos juntos na região. A gente ficaria com a mesma escola, sem precisar transferir os alunos, o mesmo Posto de Saúde, as pessoas ficariam com seus empregos aqui na volta e manteriam seus vínculos familiares e de amizade.”

Ele afirma que há um terreno do município próximo e com área maior que a da vila, onde poderia ser reconstruída a Nazaré.

MPF exige plano de reassentamento

A Ação Civil Pública ajuizada pelo MPF pede que a Fraport Brasil assuma a responsabilidade de resolver a questão habitacional, arcando com o custo do reassentamento.

Pede ainda que a empresa e a prefeitura suspendam as remoções até o cadastro integral das famílias e a elaboração do Plano de Reassentamento, em que sejam detalhados as opções de soluções habitacionais e os critérios de seleção, a ser submetido à discussão com a comunidade.

De acordo com a ação, a realocação se dá em “cenário de falta de transparência, violação à isonomia, impessoalidade e publicidade, uma vez que as famílias ainda não cadastradas não podem, caso queiram, concorrer às unidades que já estão sendo distribuídas”.

De acordo com a ação na Justiça, a realocação se dá em cenário de falta de transparência, violação de direitos dos moradores

Foto: Leonardo Savaris

De acordo com a ação na Justiça, a realocação se dá em cenário de falta de transparência, violação de direitos dos moradores

Foto: Leonardo Savaris

 

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