MOVIMENTO

Fórum das Resistências: mulheres debatem ações para garantir Estado laico e democrático

O fundamentalismo religioso aplicado na política, ataque às pautas feministas, a heteronormatividade como regra e os históricos ataques às religiões de matriz africana foram temas do debate
Por Stela Pastore / Publicado em 23 de janeiro de 2020

Foto: Stela Pastore

Foto: Stela Pastore

O fundamentalismo religioso aplicado na política, ataque às pautas feministas, a heteronormatividade como regra, os históricos ataques às religiões de matriz africana,  educação libertadora e a reorganização das mulheres na nova fase do capitalismo  foram temas do debate Mulheres por um Estado Laico e Democrático, na manhã desta quinta-feira, 23 de janeiro, integrando a programação do Fórum Social das Resistências.  Ao final do encontro foi elaborada uma carta com os encaminhamentos do encontro.

“O Brasil vive hoje fundamentalismo religioso, político e econômico. Isto precisa ser posto no centro do debate ou não conseguiremos ter a dimensão da realidade”, alertou Ana Naiara Malavolta Saupe, integrante do movimento Marcha Mundial de Mulheres (MMM), a primeira palestrante do debate. Ela relembrou que o slogan “Deus acima de tudo” fez parte da campanha a presidente de Jair Bolsonaro, que tem em seu governo cinco ministros ligados às maiores igrejas pentecostais do país, dando a dimensão da interferência de crenças particulares sobre as políticas de Estado. Sem contar com Roberto Alvin, Secretário Nacional de Cultura, demitido em janeiro após publicar vídeo em que fazia um discurso semelhante ao utilizado por Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda na Alemanha nazista.

“Se coloca a bandeira política como vontade de Deus. Esses políticos se sentem obrigados a nos converter e a sujeitar a política como no fundamentalismo Islâmico”, comparou Ana durante sua fala no debate. Para ela, após o impeachment de 2016, que tirou a presidenta Dilma Rousseff da presidência, a laicidade vem perdendo terreno. “É a heteronormatividade como regra e o resto como fruto do demônio”, resumiu Ana.

A diferença entre a perspectiva religiosa e a científica, segundo ela, é o Estado estar neutro para poder ser o mediador dos conflitos. “Não há mediação possível com Estado fundamentalista, onde os adversários são os inimigos de Deus e precisam ser eliminados no sentido literal da palavra”, explica. Na economia, o Brasil demonstra fundamentalismo colocando o lucro acima de tudo e o desprezo às questões sociais.

Laicidade em disputa
A conexão entre a religião e o Estado Brasileiro manteve-se por 371 anos. De acordo com a ativista da MMM, mesmo o país tendo formalmente se tornado laico em 1891, manteve forte influência da religião, especialmente na educação, como forma de manter a moral e os bons costumes, sendo ainda um campo em disputa em temas como aborto e outros assuntos.

Na Constituição de 1988, ocorreu o lobby das igrejas para retirar a laicidade da carta, momento em que a bancada religiosa começou a se organizar, chegando as dimensões atuais em que, só na Câmara Federal, casa onde tramitam dezenas de projetos conservadores, alcança 85 deputados reunidos na chamada bancada da Bíblia. Somada a bancada do boi, formada por deputados do setor ruralistas, e da bala, das armas, são 223 parlamentares de um total de 513.

O Superior Tribunal Federal (STF) também contribuiu para o avanço do conservadorismo, ainda em 2016, permitindo a religião confessional como optativa nas escolas, com a maioria dos estudantes frequentando as aulas sem ter clareza da normativa. “Não tem saída se não lutarmos pela laicidade. Liberdade religiosa é uma coisa e intolerância religiosa é outra. Não podemos ter tolerância com a intolerância”, concluiu Naiara.

Racismo e patriarcado
“Para nós o Estado nunca foi laico”, afirmou Regina Nogueira, do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos de Matriz Africana (Fonsanpotma). Conhecida como Kota Mulangi, que significa “combatente”, ela foi enfática ao falar da perseguição ao povo negro e às religiões de matriz africana por diferentes governos e religiões, sempre sendo colocados em posição de inferioridade. “Precisamos entender que todos os povos devem ser respeitados”, afirmou.

Foto: Stela Pastore

Foto: Stela Pastore

Mulangi fez fortes críticas às religiões pentecostais que têm adentrado em territórios indígenas e quilombolas para abordar especialmente as mulheres. A liderança fez críticas também aos governos de esquerda por pactuarem politicamente com esse segmento evangélico por interesses eleitorais.

Sob forte aplauso, evocou os poderes de várias orixás femininas e resumiu sua posição: nem feminismo, nem mulherismo, mas oxumanismo, o reconhecimento do poder feminino.  “Nós mulheres negras, de tradição da matriz africana  material e imaterial, sabemos que querem nos destruir. Nós combinamos que não vamos morrer.”

A psicóloga e ialorixá Sandrali Bueno, reconhece que o patriarcado também tem fortes inflexões nas religiões de matriz africana. “Somos o estado que mais se declara de matriz africana e o mais racista, e onde a maioria é branca e de homens.  É mais uma forma de roubar o poder e a potência das mulheres de matriz africana que até agora tem trazido a luta do povo brasileiro”.

Educação, diálogo e unidade
“A verdadeira bíblia não diz aquilo o que está fazendo a elite financeira. As pessoas estão sendo enganadas, ludibriadas. Através do fundamentalismo religioso, estão minando o processo democrático no Brasil”, apontou a professora aposentada, primeira senadora no estado, ministra de políticas para mulheres no primeiro ano do governo Lula e integrante do Fórum de Mulheres do Mercosul, Emília Fernandes.

Ela enfatizou o engodo, a farsa e o prejuízo do atual governo, que chamou de neofacista.  A pedagoga, enfatizou a atualidade da educação libertadora de Paulo Freire para a resistência.  “Temos que anunciar a importância do diálogo, ver julgar e agir como ele nos orientou”.

Parlamentar por 22 anos, Emília chamou pela união das esquerdas para superar esse momento de governos ultraneoliberais. “Ninguém se liberta sozinho. A unidade é fundamental para enfrentar os próximos desafios eleitorais. Temos de nos unir por um projeto de desenvolvimento”, conclamou.

Educar crianças feministas
A doutorando em educação e integrante da rede pública de Porto Alegre, Camile Pegoraro, desafia à defesa da educação libertadora. “É preciso defender as escolas com unhas, dentes  e garras, com tudo  o que tivermos”, desafia.

Especializada em educação de crianças de 10 a 11 anos, observa a adolescência precoce nessa faixa e o fato de já chegarem machistas, racistas e meritocratas.  A educadora observa que desde as histórias infantis, as mensagens alimentam essa conduta. Camile entende que é preciso educar crianças feministas. “Educar para a sororidade. Fomos criadas para sermos inimigas”, destaca.

Ela alerta que hoje as igrejas educam muito mais que as escolas. E os educadores precisam estar atentos a isso.  “Como escola somos o resultado de uma sociedade, mas também transformamos a sociedade de acordo com nossas necessidades. Temos que dialogar com o diferente. A sociedade não muda se falamos só entre nós. Podemos fazer isso em qualquer espaço e movimento e que vá se construindo brechas para transformar os valores”.

 Reconhecer o opressor
Quanto aos relacionamentos abusivos, a pesquisadora orienta primeiro a observar como nos sentimos. “É importante reconhecermos que somos oprimidas e saber quem é o nosso opressor”, lembrando dos estereótipos a que as mulheres foram submetidas com histórias infantis como a da Bela e da Fera, da Disney.

“Como eu me liberto de um relacionamento abusivo, sendo que a referência é a Bela que ficou com a Fera até que se transformasse. Não somos enfermaria de homens para transformá-los em algo melhor. Precisamos encontrar companheiros com a responsabilidade de nos formarmos mutuamente”, concluiu.

O trabalho expulso do capitalismo
No final do encontro a economista Lucia Garcia explicou as mudanças da estrutura econômica e seus impactos nos trabalhadores e nas mulheres. A economista do Dieese, descreveu as mudanças na relação capital e trabalho, fazendo uma análise das modificações das pautas desde o primeiro Fórum Social Mundial, em 2001, até o atual.

“Esperávamos dar um chute no capitalismo mas ele está dando um chute no trabalho. Temos cada vez menos pessoas nas estruturas produtivas, tantas desempregadas e remunerações cadentes. Cada vez cabe menos o povo na riqueza. A sociedade salarial esboroou.  O capitalismo não nos quer. A necropolítica é isso: ela não precisa de nós. Ela mata os sobrantes. A vida não vale. Além dos choros e gritos, nada mais acontece”, analisa a economista.

“Há vinte anos tentamos entender e tivemos pouco entendimento e poucas medidas práticas. Temos que recuperar a capacidade de ser esquerda, e sabermos como o capitalismo está se movendo. Estamos claramente diante de um novo modelo capitalista desde 2008. O capitalismo está renovado, numa economia plataformisada na Internet, com a informação privatizada. Esse movimento sindical que está aqui não vai resistir”.

Ela entende que há uma nova ordem, novo capitalismo, um novo Estado que precisa ser entendido. “Há um avanço sobre a natureza, uma degradação de espaços que antes eram protegidos do Estado e agora são mercadoria como educação, saúde, bem-estar, assistencial social”. Nessa nova conjuntura econômica, a invisibilidade do trabalho feminino estará acentuada devido às plataformas online que burlam todas as leis trabalhistas locais.  “É preciso recuperar o lugar do feminismo classista diante dessa nova realidade.  O internacionalismo e o feminismo internacional são necessários mais do que nunca.”, conclui.

A atividade lotou o auditório da Fecosul e foi proposta pelo Coletivo Feminino Plural, União Brasileiras de Mulheres, Fórum de Mulheres do Mercosul e Marcha Mundial de Mulheres.

 

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