MOVIMENTO

Medidas contra os trabalhadores podem causar caos social

A economista Anelise Manganelli denuncia flexibilizações que afetam até mesmo profissionais da saúde nas medidas anunciadas pelo governo Bolsonaro
Por César Fraga / Publicado em 24 de março de 2020

Anelise Manganelli, técnica no Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese)

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

A economista Anelise Manganelli, técnica no Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), afirma que todas as medidas anunciadas pelo governo até o momento possuem um viés de defesa dos interesses empresariais. “Expõem os trabalhadores em demasia”, garante. “Diante da insuficiência das ações por um lado e a retirada de direitos por outro, o país corre sérios riscos de não apenas as pessoas se sentirem obrigadas a quebrar a quarentena por falta de dinheiro e de recursos para se manterem em casa, mas também de produzir caos social quando a crise se alastrar pelas camadas mais desassistidas”.

A economista também chama atenção para a Medida Provisória 927, anunciada no domingo, 22,  que possui artigos que fragilizam ainda mais setores essenciais, abrangem os trabalhadores que atuam nas redes de abastecimento, segurança e principalmente da saúde, linha de frente ao combate ao Covid-19. O que torna ainda mais grave a medida. O  Dieese emitiu  nota  técnica que avalia os pontos mais críticos da MP 927. O documento complementa estudo divulgado no dia 19, que aponta a insuficiência das medidas governistas e o que é necessário para atenuar de fato a fragilização da economia do país, que enfrentará um período de depressão.

Anelise analisa também as 33 medidas definidas pelas centrais sindicais para serem monitoradas e adaptadas ao longo do período em que perdurar a crise causada pelo coronavírus, com o objetivo de proteger os trabalhadores com garantia de estabilidade no trabalho e renda. Essas medidas foram apresentadas no dia 17 de março ao presidente da Câmara Federal Rodrigo Maia. De acordo com o governo, as propostas seriam debatidas em grupo técnico com a presidência da Câmara, as centrais e os empresários. Após o anuncio da MP 927, na segunda-feira, 23, Rodrigo Maia disse que vários pontos acordados não entraram no texto final. Ou seja, as propostas foram ignoradas.

Mas que texto teria servido de base para o governo emitir  a MP 927?  Aliás, o texto da MP se parece muito com a redação das propostas da Confederação Nacional das Indústrias (CNI) encaminhada ao Governo dias antes, por ocasião do anuncio das primeiras ações governamentais.

Extra Classe – O governo federal tem escutado muito os setores empresariais e financeiros. Existe algum espaço para as representações dos trabalhadores nessa montagem de soluções diante da iminente crise de trabalho, emprego e da própria economia, ante os efeitos causados da quarentena prolongada que visa amenizar a disseminação do coronavírus?
Anelise Manganelli –
 O movimento sindical está fazendo um esforço para acompanhar tudo que está sendo encaminhado pelas instâncias governamentais. O fato é que o Governo Federal não tem sentado para conversar e pouco espaço tem sido aberto para contribuições. O movimento sindical se reuniu na sede do Dieese, em São Paulo, e elaborou 33 propostas.  Trata-se de conteúdo bastante útil que contém sugestões para o enfrentamento da crise com o olhar dos trabalhadores. Tratam-se de sugestões bem pontuais, mas que dão uma ideia de como está equivocado o encaminhamento que o governo tem dado.

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

EC – Como o excesso de flexibilização dos direitos dos trabalhadores?
Mangnanelli – 
Talvez a questão principal seja a flexibilidade excessiva que o governo concede para as empresas e empregadores e não olha para o bem estar dos trabalhadores e suas famílias. Se formos analisar do ponto de vista econômico, conforme estudos realizados, 87% da dinâmica econômica brasileira se dá pelo mercado interno. Isso significa que é o consumo das famílias que move a economia. Vestuário, educação. O governo tem emitido várias medidas. Um exemplo é a Medida Provisória 927, que permite ao empregador antecipar férias, a concessão de férias coletivas, mas retira os sindicatos do processo de negociação. Tenta elaborar uma norma para fazer um aproveitamento e antecipação de feriados.  Além disso, suspende uma série de exigências administrativas em relação à segurança e saúde no trabalho. Isso é grave.

“A questão principal é a flexibilidade excessiva que o governo concede para as empresas e empregadores e não olha para o bem estar dos trabalhadores e suas famílias. Se formos analisar do ponto de vista econômico, conforme estudos realizados, 87% da dinâmica econômica brasileira se dá pelo mercado interno”

EC – E o Lay Off?
Manganelli –
 Também foi incluída nesta mesma MP o direcionamento do trabalhador para a qualificação. Que foi o ponto revogado pelo presidente Bolsonaro menos de 24 horas depois de emitida a MP – o artigo 18. Também conhecido como lay off, que é quando a empresa coloca o trabalhador para fazer um curso de qualificação. Mas normalmente ele conta com o seguro desemprego nesse período. E o que consta do artigo revogado é que à empresa fica permitido não pagar os salários por esses quatro meses colocando o funcionário na qualificação, onde receberia uma bolsa de qualificação. Mas a medida não diz nem o valor da bolsa e nem permite que funcionário receba o seguro desemprego. Mas entre anunciar a revogação e estar revogado de fato tem uma distância. [Nota do Editor  há impedimentos legais à revogação de uma MP por outra MP sem passar pelo Congresso, conforme jurisprudência do STF]

EC – Teve ministro que disse que foi erro de redação?
Manganelli –
Não sei se ele (Bolsonaro) não leu o que assinou ou não entendeu o que dizia. E, nesta mesma medida, ele segue com alguns benefícios que ele oferece às empresas, como, por exemplo, a possibilidade do empregador não recolher o FGTS. Que é um valor como se fosse um salário, que na verdade é uma poupança que os trabalhadores têm. Ele estende o prazo de pagamento do FGTS. Permite que empresas posterguem refinanciamentos, não pagar alguns impostos.

EC – E as garantias para os trabalhadores?
Manganelli –
Se a gente olhar com atenção esta MP ela é um bom indicativo de que os benefícios, em cada um dos artigos, são somente para as empresas. Em nenhum momento, nem essa, nem nenhuma das medidas anunciadas desde que começou essa crise causada pela pandemia do coronavírus, garante a estabilidade do trabalhador, seja quando ele voltar dessa eventual suspensão do contrato ou mesmo para proteger os trabalhadores que atuam nos serviços essenciais. Muito pelo contrário.

EC – Trabalhadores de saúde e demais serviços também ficam sem proteção?
Manganelli –
Essa MP torna escancarado o descaso com os trabalhadores da saúde, inclusive. Todo mundo vai na janela aplaudir. Há um consenso do reconhecimento da importância desses trabalhadores neste momento. E um dos artigos da MP não permite que o trabalhador da saúde infectado por coronavírus seja afastado por acidente de trabalho. Ou seja, que essa doença adquirida no trabalho não tenha impacto trabalhista. Isso não só para a saúde, mas vale para todos que estão trabalhando em serviços essenciais. Supermercados, farmácias, policiamento, bombeiros.

EC – O que diz a medida?
Manganelli – 
A MP estabelece que vai precisar haver o nexo causal, que liga o efeito e a causa, tornando muito difícil para os trabalhadores provarem isso caso a caso. O trabalhador sai da sua casa, pega trem, uber, ônibus, vai caminhar até o uma repartição do SUS para provar o nexo. Imagina como vai dificultar e inviabilizar. Na prática este trabalhador vai se afastar por auxílio doença e não por acidente de trabalho. Qual a diferença desses dois benefícios? Os quinze primeiros dias toda empresa tem de pagar. Depois ele vai para esse auxílio. E no caso do auxílio doença o empregador não vai precisar ficar pagando o FGTS, mas no acidente de trabalho sim. A própria MP já prorroga os prazos para os pagamentos. Então, não é um benefício direto de contenção de custos para o empregador. Não tem como olharmos para essa MP sem notar o viés de crueldade contido no texto.

EC – De um exemplo?
Manganelli –
Vamos pegar o exemplo de uma enfermeira que contraiu o Covid-19. Ela vai se afastar, não será considerado acidente de trabalho e ela morre. Essa realidade foi recorrente em todos os países afetados: pessoas da área da saúde estão morrendo por conta da contaminação. O familiar que dependente dessa enfermeira que faleceu vai receber conforme o regramento da modalidade de auxílio-doença uma pensão de 60% do valor do salário dela e por um período restrito (existem muitas possibilidades de redução do tempo de concessão). Se fosse enquadrado como acidente de trabalho seria garantida a renda integral. Como é um outro auxílio doença qualquer, sem ser classificado da maneira correta vão ocorrer muitas dessas situações. Por isso, o texto é cruel. Pois os trabalhadores são os que estão mais sujeitos a pegar esses vírus.

EC – Isso vale na verdade para todos os profissionais, inclusive jornalistas, na linha de frente da cobertura, linhas de produção de alimentos e bens como fabricantes de bebidas e alimentos, pessoal do transporte e logística, correto? Falamos de milhões de pessoas.
Manganelli – 
Exatamente. Todo mundo que está trabalhando na cadeia de suprimentos ao comércio de supermercados, alimentos e farmácias, também entram nessa conta.

EC – E o trabalhador informal como fica?
Manganelli – 
Pois então. Quando passar tudo isso teremos de retomar a economia. O problema é que o governo não consegue encaminhar medidas que deem segurança para os trabalhadores formais: garantir salários, renda mínima, auxiliar as empresas com essas garantias. O empregador não pode ficar com esse ônus sozinho. O Estado tem de entrar nisso. O governo desonera as empresas mas pouco demonstra como pode injetar recursos para isso. Terão de haver negociações, pois existem setores mais atingidos do que outros.

Medidas do governo contra os trabalhadores podem causar caos social

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

EC – Quais são os mais atingidos?
Maganelli –
Toda a rede de hotelaria, companhias aéreas e os segmentos ligados ao turismo são setores que estão sem alternativas. Dá para ampliar ainda para entretenimento, bares restaurantes, uma gama imensa de negócios e serviços em geral.  Esses setores certamente precisão de socorro. Por outro lado, temos o segmento de serviços de entrega, a cadeia de saúde, de itens de farmácia que não sofrerão grande impacto porque a demanda cresceu exponencialmente. É aquela história, enquanto uns choram outros vendem lenços. Se o governo não interferir, o livre mercado não vai fazer sozinho essa diferenciação. O estado precisa ser mais atuante agora para equilibrar esses desníveis, identificando quais setores precisam de mais ajuda que outros.

EC – O governo está tratando de forma igualitária sem que haja uma compreensão dos diferentes níveis de dificuldade?
Maganelli – 
Exatamente. E o mesmo vale para os trabalhadores, pois há uma parcela da população que é muito mais vulnerável. Que não tem recursos. A renda média dos trabalhadores é muito baixa. As pessoas não têm poupança para ficar quatro meses sem receber, caso uma medida como essa fosse aprovada.

EC – A fragilização dos trabalhadores também afetará a economia na retomada?
Manganelli –  Quanto mais fragilizados ficam os trabalhadores formais, quanto mais aumentar o desemprego, aumenta ainda mais a pressão no mercado informal, onde estão os trabalhadores em pior situação, que é uma mão de obra que começa a entrar em desespero. Com isso, vai acontecendo o movimento inverso. Hoje os especialistas de saúde estão indicando para as pessoas que fiquem em casa. Para as pessoas ficarem em casa elas tem de ter o mínimo de garantia de que terão dinheiro para comer. Ninguém se alimenta de curso de qualificação. Isso não tem ligação nenhuma com a realidade das pessoas. Para que haja uma suavização dentro dessa situação dramática dos informais, por exemplo, precisaria ter esse apoio ao mercado formal de trabalho. De modo que outras políticas suplementares pudessem dar um apoio a partir de políticas sociais, como bolsa-família, complementação de renda para empreendedores individuais, para que essas pessoas possam sobreviver financeiramente a este período. Do contrário, o que vai acontecer? As pessoas precisam pagar pela comida que elas comem. Precisam pagar o aluguel. O governo não está editando nada que garanta a renda das famílias, mas sim a renda das empresas, que não estão obrigadas a garantir os empregos. Isso só vai agravar ainda mais as dificuldades da retomada da economia e do crescimento. Isso dependendo do que possa vir a acontecer.

EC – Por exemplo.
Manganelli – 
 Caos social, por exemplo. As pessoas podem começar a saquear supermercados. É uma coisa que foge de qualquer controle. Por isso, o governo precisa olhar para todos esses aspectos, para não deixar chegar nesse nível.

“As pessoas precisam pagar pela comida que elas comem. Precisam pagar o aluguel. O governo não está editando nada que garanta a renda das famílias, mas sim a renda das empresas, que não estão obrigadas a garantir os empregos. Isso só vai agravar ainda mais as dificuldades da retomada da economia e do crescimento”

EC – E as medidas anunciadas antes da MP, como a senhora avalia?
Manganelli – 
O Dieese emitiu uma nota técnica que resume um pouco o que o governo está propondo: passa por antecipar a segunda parcela do décimo terceiro dos aposentados e pensionistas, que era para maio e agora estão antecipando; a questão do PIS, de permitir os saques; a antecipação de abono salarial; o reforço do Bolsa família; adiamento do pagamento do FGTS, do Simples. Todas essas medidas de aporte do governo totalizariam R$ 147 bilhões. O nosso PIB é de R$ 7 trilhões. Para se ter uma ideia o governo da Espanha anunciou algumas medidas olhando para o mercado de trabalho e garantindo renda para as pessoas que receberam o diagnóstico do coronavírus, eles garantem uma renda de 100% sem precisar de burocracia. As empresas espanholas que não conseguem pagar o salário integral, o governo está entrando com uma participação. O governo paga uma parte e a empresa paga outra, garantindo pelo menos 66% da renda, priorizando as atividades essenciais. Há um combo de alternativas que estão sendo propostas que somam 20% do PIB espanhol. O Dieese fez um levantamento de como outros países estão enfrentando essa crise causada pelo coronavírus e o Brasil está na contramão .

EC – Como os percentuais de PIB são proporcionais a cada país isso arrasa o argumento de que o Brasil é muito maior do que Espanha e por isso seria difícil de implantar? Como é proporcional não importa o tamanho, mas a fatia do PIB?
Manganelli – 
Exato. Então R$ 147 bilhões em um PIB de R$ 7 trilhões é muito pouco. O governo brasileiro está sinalizando com que o governo espanhol já está fazendo. É nesse sentido que o movimento sindical está reunido e está tentando. Embora todos nós estejamos trabalhando em home-office, a rotina de trabalho está sendo muito mais intensa. E essa MP, apesar do artigo revogado [ Nota do redator: jurisprudência do STF não permite que uma MP revogue outra ou partes sem apreciação do congresso] é escancarado o que estão fazendo com o pessoal da saúde. O pessoal da saúde além da questão de só ficar com direito ao auxílio-doença e sem o acidente de trabalho, ainda fica mantida a possibilidade do pessoal da saúde ter sua jornada de trabalho até dobrada. É óbvio que essas pessoas vão acabar adoecendo. Ao invés disso o que eles deveriam estar fazendo, captando voluntários, pessoas que querem trabalhar, e que podem receber uma capacitação. A questão da dívida pública é uma questão que falamos muito. Nos EUA estão usando a dívida pública  para obter recursos, assim como outros países sinalizam nesse sentido e até operacionalizando já.

EC – E os bancos brasileiros que tiveram lucros exorbitantes nos últimos cinco anos?
Manganelli – 
Anualmente, o Dieese produz uma nota técnica fazendo um balanço dos lucros do setor. O ano de 2019 fechou e não foi diferente da série histórica, que vem apresentando lucros recordes para praticamente todos os bancos. Chegou a hora do setor bancário dar sua contribuição. Fazer sua cota de sacrifício. Mas o governo precisa sinalizar nesse sentido. Não adianta só ficar cortando salário que só vai agravar lá na frente, dificultando a retomada da economia, com uma mão de obra desesperada, com possibilidade de caos social para além do que já existe. Estamos falando de gente passando fome e total falta de controle sobre isso.

EC – Qual a orientação para os trabalhadores que tiverem problemas nos seus locais de trabalho nessa hora?
Manganelli – 
Procurar o seu sindicato. As empresas têm obrigações constitucionais e morais diante do confinamento dessas vidas dos trabalhadores, seja em casa, seja dentro dos seus espaços de trabalho. Existe uma nota do Ministério Público do Trabalho com orientações. Óbvio que o MPT não vai dar conta de resolver todas as questões que vão existir no caminho dessa crise. Mas eles ratificam que os sindicatos são instituições legítimas para isso. Diante de uma MP que deixa os sindicatos totalmente fora do processo é preciso lembrar que os sindicatos estão obtendo vitórias nas Justiça para obrigar as empresas a ter as Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e cumprir os regramentos legais.

EC – E na área da educação, o Dieese está produzindo algum estudo?
Manganelli – 
Estamos produzindo um levantamento de experiências que estão sendo realizadas em cada continente no enfrentamento da crise gerada pelo coronavírus e quais as principais ocorrências no âmbito trabalhista decorreram.

 

*Anelise Manganelli é graduada e mestre em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). É especialista em Gestão Estratégica em Políticas Públicas pela Universidade Estadual de Campinas e nas áreas da Economia com ênfase em Mercado de Trabalho e Educação.

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