Sindicatos e movimento social se unem para combater a fome
Foto: Igor Sperotto
A prioridade da ação solidária são as pessoas que vivem em ocupações urbanas ou trabalham em galpões de reciclagem, cooperativas de catadores, numa relação com as lideranças das comunidades, associações de bairros e conselheiros tutelares, relata Amarildo Cenci, presidente da CUT-RS e diretor do Sinpro/RS. Também são entregues kits de higiene, roupas para enfrentar o frio e máscaras de algodão orgânico produzidas pela Cooperativa de Costureiras Unidas Venceremos (Univens).
Uma dessas doações chegou à casa de Neri Pimentel, 63 anos, no bairro Humaitá, onde mantém três netos com menos de dez anos. Um Acidente Vascular Cerebral (AVC) no início de maio o levou a uma internação durante a qual precisou de ajuda para cuidar das crianças. Na entrega das cestas, no dia 13 de maio, Neri não estava em casa. Saíra para consertar eletrodomésticos e tentar comprar gás. “Ele não quer deixar faltar comida”, revela Cristiane Chaves Ferrão, 40 anos, que atendia as crianças na pequena casa de madeira inundada pela chuva da noite anterior. O colchão e as cobertas úmidas afugentaram os meninos para um canto mais seco do único quarto, de onde assistem desenho animado na TV.
Os alimentos recebidos também foram compartilhados com seus dois netos. Desempregada, Cristiane cuida de filhos da vizinhança na Vila Santo André, enquanto as famílias trabalham fora. O isolamento aumentou as dificuldades. Ela reunia as crianças e buscava doações de pão e sobras num supermercado próximo. Não conseguiram entrar porque estavam sem máscara. A rotina tem sido assim: sem trabalho e sem comida, moradia precária, não há máscaras, nem álcool em gel.
Outra ação solidária coincide com o momento da entrega dos víveres. Na estreita rua sem pavimentação, passa um carro com pessoas alcançando “quentinhas” pela janela. As crianças do seu Neri garantem suas porções e voltam pra dentro de casa com pés embarrados e sorrisos nos rostos.
Espreita pela ajuda
Foto: Igor Sperotto
Quando viu a cesta ser entregue no seu Neri, a vizinha Lidiane Maria Lorenzo, 30 anos, veio de documentos em mãos, chinelo de dedo e meia, saltando as poças de barro. Também desempregada e com quatro filhos, ela recebe o Bolsa Família e economiza para alimentar a prole nesse período sem aulas e sem merenda. Os kits que deveriam vir da escola para compensar, ainda não chegaram. Do outro lado da rua, pelas frestas da cerca, uma senhora chama para saber como receber um rancho.
Próximo dali, a presidente da Associação de Moradores Santo Antônio, Maria Salete Gonçalves, transformou sua casa numa unidade de recepção e distribuição de cestas básicas recebidas dos sindicatos. Arroz, feijão, óleo, açúcar, massa, leite, batata-doce são entregues por sindicalistas do Semapi-RS e Sindibancários. “Essa doação é uma alegria que compartilhamos”, afirma Maria Salete. Moradora da ocupação há 16 anos, conhece as precariedades da vizinhança, assim como Ronaldo Jesus, da ocupação Campos Verdes, que aguardava os carros dos sindicatos na entrada da vila para as doações.
Cooperação entre campo e cidade
“O sindicato não pode ser apenas uma agremiação de defesa dos interesses corporativos. Deve estar presente na defesa da vida e da democracia”, observa o presidente da Adufrgs Sindical, Lúcio Vieira, que integra o mutirão proposto pela CUT-RS, juntamente com o Sinpro/RS, Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, Sindipetro-RS, Senergisul, Sindserf-RS e Semapi-RS.
O professor Vieira relata que essa articulação aproxima trabalhadores do campo e da cidade. Os alimentos distribuídos nos centros urbanos são produzidos pela Rede Coop, que reúne 24 cooperativas da Agricultura Familiar, e são distribuídos pela Cooperativa Mista de Agricultores Familiares de Itati, Terra de Areia e Três Forquilhas (Coomafitt), que monta as cestas, levando-as até as entidades sindicais.
Tumulto por comida
Nos 22 Centros de Referência em Assistência Social (Cras) de Porto Alegre, houve tumultos na busca de alimentos. A Prefeitura determinou atendimento somente por telefone, tanto para solicitar o donativo, quanto para o Cras da região agendar a entrega. Segundo a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), 18 mil cestas básicas chegaram às famílias do Cadastro Único, na faixa de renda até R$ 89,00 per capita, excluídos do Bolsa Família ou outros benefícios. São cerca de 18,7 mil famílias nessa faixa de renda.
“Não raras vezes foi preciso acionar a polícia para organizar as filas”, relata o conselheiro tutelar Remo da Silveira. Ele destaca a falta de vagas na educação infantil e nos projetos sociais, o que fragiliza a infância e adolescência. “A onda de solidariedade do terceiro setor abrange um maior número de pessoas em situação de vulnerabilidade de forma mais democrática”, entende.
Bem antes da pandemia, denúncias do desmonte do Sistema Único de Assistência Social (Suas) e do Sistema Único de Saúde (SUS) já eram frequentes na capital, com fechamento de abrigos para a população em situação de rua, desativação de restaurantes populares, redução de investimentos e terceirização de serviços. Em 2016, o orçamento da assistência era de R$ 99 milhões e, em 2019, caiu para R$ 66 milhões.
Solidariedade ameniza o desespero
Foto: Igor Sperotto
No RS, o Consea resistiu ao desmonte e criou o Comitê Gaúcho de Emergência no Combate à Fome que, junto à Ação da Cidadania e à Cáritas Brasileira Regional, atua em campanhas de ajuda. Iniciou com a entrega de 1,5 mil cestas básicas para povos tradicionais de matriz africana, indígenas e comunidades fragilizadas da Região Metropolitana. “A situação só não é pior pelas inúmeras iniciativas de solidariedade”, registra o presidente do Consea-RS, Juliano de Sá.
Entre essas iniciativas está a formação do Comitê em Defesa do Povo Contra o Coronavírus, que reúne Ongs, coletivos e associações que coletam e distribuem alimentos, produtos de higiene e EPIs. São iniciativas de todo o tipo, como de escolas, como a Emef Villa Lobos, que já doou 20 toneladas, numa articulação de professores e comunidade do bairro Lomba do Pinheiro.
A volta ao Mapa da Fome
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU) alerta para o rápido retorno do Brasil ao Mapa da Fome, do qual havia saído em 2014, quando 98% da população tinha acesso à alimentação. Entre os 108 milhões de pessoas que convivem com a fome no mundo, estima-se 9 milhões no Brasil. Em março, antes da pandemia, o desemprego atingiu 12,9 milhões de pessoas no país. Todos os setores demitiram. Em 1º de maio, o governo estimava que a pandemia havia gerado 150 mil novas demissões. Os cortes em políticas sociais como a Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos (EC-95), desintegração de programas, além da extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), agravaram o cenário.
MST doa alimentos em 24 estados
Com a produção oriunda dos assentamentos, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) vem doando diariamente toneladas de alimentos em 24 estados. Só de arroz orgânico foram 12 toneladas no RS e grande variedade de outros produtos. “Disponibilizamos o que temos, o alimento. Não é caridade, mas um sentido de colaboração com a organização da periferia e retribuir a solidariedade que já recebemos como movimento”, traduz o coordenador do MST no RS, Cedenir de Oliveira. “Conquistamos a terra e hoje dividimos nossa produção”, destaca Rosi de Lima Costa, da Coperforte de Santana do Livramento.
Excluídos do Bolsa Família no RS
A fome e o desamparo cresceram vertiginosamente no governo Jair Bolsonaro. Entre 2019 e 2020, foram desligadas mais de 100 mil pessoas do Bolsa Família no estado, 12 mil só em Porto Alegre, abrangendo cerca de 40 mil pessoas, informa a diretora de Relações Institucionais da Rede Brasileira de Renda Básica, Paola Carvalho.
“Hoje 41.557 famílias recebem o Bolsa Família e mais de 40 mil estão na lista de espera do programa na capital. Não encontram nenhuma porta de inclusão no governo”, aponta Paola. Ela chama a atenção para a extrema dificuldade das famílias em acessar o auxílio emergencial de R$ 600,00, o que fez o Ministério Público Federal acionar o governo. O Rio Grande do Sul, e Porto Alegre, já tiveram programas de renda mínima, como o RS Mais Igual e o Núcleo de Apoio Sócio Familiar (Nasf). “Nunca um programa de renda mínima foi tão necessário como agora”, conclui.