O padre que ampara moradores de rua em tempos de pandemia
Foto: Reprodução/Redes Sociais
Ele tem 71 anos de idade e, mesmo pertencendo ao grupo de risco da Covid-19, não deixa de todos os dias sair às ruas para o que considera ser um ato coerente com a sua fé. Vigário do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, posto que foi criado pelo Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns quanto estava à frente da maior diocese católica do Brasil, o Padre Júlio Lancellotti mais uma vez sofre ataques por sua atuação. Desta vez é acusado de “Cafetão da Miséria” pelo deputado estadual Arthur do Val, que se tornou conhecido pelo alter ego Mamãe Falei, dos Movimentos Brasil Livre (MBL) e da Escola Sem Partido. O empresário e youtuber Arthur do Val é candidato à prefeitura da capital paulistana pelo partido Patriota. No meio de mais essa polêmica, que, para variar lhe rendeu ameaças, Padre Júlio agora – além de ações violentas da prefeitura de Bruno Covas (PSDB), conhecidas como rapa, que retira cobertores e pertences da população de rua de São Paulo – agora tem trabalhado forte para reduzir o impacto da pandemia entre os mais necessitados. Há 36 anos à frente de trabalhos sociais para amparar moradores de rua, o sacerdote adotou máscaras, luvas e avental no seu dia a dia. Uma forma de se prevenir e, também, evitar que possa vir a ser um agente transmissor do vírus, que tem afligido os mais vulneráveis.
Extra Classe – No início do isolamento social, quando se estabeleceu àquela disputa insuflada pelo presidente Jair Bolsonaro do fique e do não fique em casa, chegou até a surgir gente contra o isolamento que usou argumentos nesse sentido: “Você já viu algum morador de rua com covid?”. O que o senhor me diz de declarações desse tipo?
Padre Júlio Lancellotti – Esse tipo de afirmação é de uma perversidade, de um desdém. Eu vi morador de rua com covid-19 e vi alguns que morreram! Agora, justificar para não ficar em casa quem tem casa a partir do sofrimento de quem não tem casa e fica na rua é de uma desumanidade.
EC – Quem é a população de rua?
Padre Júlio – É uma população que cresce em todo o Brasil e nas grandes cidades do mundo. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não faz o censo dos que sobrevivem nas ruas por considera-los sem domicílio. Agora, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) diz que há 220 mil pessoas pelas ruas das cidades do Brasil. E é uma população heterogênea que precisa de propostas que contemplem a diversidade humana.
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EC – A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves, que também é pastora, chegou a afirmar na época, que poucos moradores de rua foram contaminados pelo coronavírus porque “ninguém pega na mão deles”. Acrescentou um, “infelizmente”. Damares tem razão?
Padre Júlio – Olha, nós não tivemos na população de rua o nível de contaminação que se imaginava. Isto está até sendo estudado porque ainda não se tem claro o porquê. Agora, se ninguém pega na mão deles, a ministra Damares poderia ser ela a começar a pegar na mão. Eu pego na mão deles. Sempre, todos os dias.
EC – Esses estudos que o senhor se referiu estão sendo feitos por quem?
Padre Júlio – Houve uma testagem aqui em São Paulo que foi feita pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Há várias propostas, questionamentos e teorias. Pessoas que levantam várias possibilidades. Nós achamos que a população de rua não foi tão atingida por causa da ação preventiva dos Consultórios de Rua de São Paulo (Nota da Redação: Os Consultórios na Rua são formados por equipes multidisciplinares da Prefeitura de São Paulo que prestam serviços de atenção integral à saúde da população em situação de rua da cidade). Mas essa população também não foi tão atingida como se imaginava em outras cidades do Brasil. Acho que é porque isso (a pandemia), começou em algumas classes sociais mais altas e foi descendo. Alguns dizem que ainda não chegou no nível da rua, mas que ainda vai chegar.
EC – Um levantamento oficial da Prefeitura de São Paulo apontou aumento de 53% na população de rua na capital que hoje seria em torno de 24.300 pessoas. Para o senhor isso realmente reflete a realidade?
Padre Júlio – Não. Para nós, o aumento é maior. O número de pessoas nas ruas de São Paulo é maior do que 24 mil, 25 mil pessoas. Hoje, por dados que nós cruzamos e acompanhamos, acreditamos que temos na cidade de São Paulo cerca de 30 mil pessoas vivendo nas ruas.
EC – O levantamento oficial da prefeitura é falho, então? Ao que o senhor atribui isso?
Padre Júlio – A questões de metodologia, a questões de como foi feito.
EC – Quando a situação começou a se mostrar, de fato mais grave, matérias e matérias falaram das dificuldades de higienização nas favelas, que não têm saneamento básico. Mais recentemente, a questão da proteção dos indígenas, que têm seus territórios invadidos por gente que leva a enfermidade. Tudo justo e importante. Mas, porque quase nada ou muito pouco se fala das pessoas que vivem nas ruas?
Padre Júlio – Por que é uma população descartada. E é uma população, que eu diria, ao menos acho: que não é que pouco se fala dela, se fala, mas que é uma população que apesar de estar presente é visível. Todos acabam vendo a presença deles nas ruas da cidade. Tanto são vistos, que incomodam. A gente vê quantas operações de higienização, quantas operações que as polícias e a Guarda Civil Metropolitana fazem contra a população de rua. Infelizmente, muitas vezes não se sabe como chegar neles, como fazer para os proteger.
EC – Em um ambiente já bastante discriminado e até violento, há ainda camadas que sofrem mais. Por exemplo, embora mulheres não sejam a maioria na população de rua, elas são o grupo mais vulnerável às violências, não?
Padre Júlio – Sim. Elas são as mais vulneráveis. Por quê? Porque nas ruas se repete aquilo que acontece na sociedade como um todo. A rua não é um mundo à parte. A sociedade brasileira é uma sociedade misógina. É uma sociedade onde aumenta o feminicídio. Isso acontece na rua também.
Foto: Acervo Pessoal/Reprodução/Redes Sociais
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EC – E a comunidade transexual nas ruas?
Padre Júlio – Também houve um aumento desse grupo. De gente que passou a viver nas ruas, sem ter condições de ter um teto. O grupo LGBTQ+ é um grupo que aumenta. A visibilidade deles na sociedade como um todo aumenta e nas ruas também. Então, a rua é, como disse antes, um reflexo do que acontece na sociedade como um todo.
EC – Recentemente o senhor tem sido hostilizado por um candidato à prefeitura de São Paulo (o deputado estadual Arthur do Val, o Mamãe Falei), que lhe chamou, entre outras coisas, de “cafetão da miséria”. A extrema-direita também diz que o senhor fomenta o tráfico. O que o senhor diz disso?
Padre Júlio – Eu acho que são afirmações que, em uma sociedade pluralista, eles têm o direito de dizer e eu tenho o direito de cobrar na Justiça. Eles devem apresentar, objetivamente quais são os indícios que justifiquem isso que eles dizem. O ônus da prova cabe a quem acusa.
Nas ruas se repete aquilo que acontece na sociedade como um todo. A rua não é um mundo à parte. A sociedade brasileira é uma sociedade misógina. É uma sociedade onde aumenta o feminicídio. Isso acontece na rua também.
EC – Esse deputado tem dito que o senhor está se vitimizando e que em nenhum momento o ameaçou. Agora, é inegável que, após as declarações dele, o senhor passou a receber xingamentos e ameaças com termos idênticos ao que ele usou. Ele não saberia ligar causa e efeito?
Padre Júlio – Olha, isso a gente não consegue provar, que os ataques sejam objetivamente por essa causa, mas fica claro que há uma incitação. A incitação ao ódio, essa máquina de ódio, que existe na sociedade, ela atinge e estimula realmente as pessoas. Alguém que tem uma penetração nos meios de comunicação, nas redes sociais, que diz que, se aumenta a população de rua, a culpa é do Padre Júlio, as pessoas vão me cobrar. Aqueles que estão de acordo com essa visão, vão me agredir. Vão cobrar de mim, isso, como você disse, é uma questão de causa e efeito. Se eu falar contra os jornalistas e alguém cobrar de vocês ou atacar, vocês vão dizer o padre estava falando contra nós e alguém veio e nos atacou. É realmente uma questão de causa e efeito.
EC – O senhor com frequência realiza missas na região conhecida como cracolândia, no centro de São Paulo. As acusações de fomentar o tráfico tem muito a ver com essa presença?
Padre Júlio – Jesus Cristo está do lado dos fortes ou dos fracos? Hoje ele estaria em um palácio de governo ou na cracolândia tomando bomba? A gente insiste em buscar Jesus na Igreja, mas ele insiste em ir para debaixo do viaduto. Agora, a população em situação de rua não é toda dependente de álcool e outras drogas. Muitos padecem de sofrimento mental. São pessoas que perderam quase tudo na vida e buscam resistir e superar desafios que são imensos.
EC – Como combater essa onda de ódio?
Padre Júlio – Da mesma forma como se combate as fake news. Tem acontecido muitas campanhas de combate a notícias falsas. Essas questões se combatem com informação. Você precisa consultar fontes. Você precisa ter razões. Eu acho que a nossa sociedade foi vulgarizando essas falsas informações. É preciso cobrar! Quem faz uma informação falsa, tem que ser responsável pelo que informa. Então, quando o deputado diz que o padre Júlio é cafetão da miséria, ele tem que apresentar as provas de como é que se dá essa cafetinagem. Ele tem que provar. E os meios de comunicação e as instâncias jurídicas têm que cobrar dele onde estão as evidências. Porque se isto acontece é uma coisa grave. Então, vamos ver onde é que estão os indícios.
Foto: Acervo Pessoal/Reprodução/Redes Sociais
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“A incitação ao ódio, essa máquina de ódio, que existe na sociedade, ela atinge e estimula realmente as pessoas. Alguém que tem uma penetração nos meios de comunicação, nas redes sociais, que diz que, se aumenta a população de rua, a culpa é do Padre Júlio, as pessoas vão me cobrar”
EC – O senhor chegou a chamar o ex-prefeito de esquerda Fernando Haddad de higienista. Falou também que o projeto dele, o De Braços Abertos era só “maquiagem para Copa”. Agora, no outro extremo político é chamado de “gigolô da miséria”, de fomentador do tráfico. Como é o sentimento de apanhar de todos os lados?
Padre Júlio – Isso é uma questão de relação com o poder. No poder, tanto a esquerda quanto a direita, acabam exercendo seus mandatos dentro da mesma estrutura. É por isso que não muda. Por isso que, tanto a esquerda e a direita, repetem as mesmas posições. Então, não há uma forma diferente de governar. A esquerda não governa de uma forma diferente da direita, porque governa dentro da mesma estrutura. Não basta só intencionalidade. É preciso ter uma prática democrática diversa da esquerda para a da direita. Com participação popular, com um orçamento participativo, com prioridades estabelecidas pela comunidade. Alguns governos de esquerda, como o da Luiza Erundina, conseguiram fazer isto de uma maneira mais exitosa.
EC – Por atitudes fortes suas, como chegar a beijar o pé de um transexual, o senhor recebe críticas de diversos religiosos, evangélicos e a até mesmo católicos. Como vê isso?
Padre Júlio – Essas pessoas distorcem, de certa forma, ao meu ver, a própria prática de Jesus de Nazaré. Jesus andava com as prostitutas, com os pecadores, com os marginalizados. E, veja só, quem acusava Jesus eram exatamente os religiosos. O que eu digo é o seguinte: a gente tem que buscar ser coerente com a nossa fé.
EC – A criação do Vicariato da População de Rua foi uma iniciativa de Dom Paulo Evaristo Arns, quando Arcebispo de São Paulo. Existem outras iniciativas como essa pelo Brasil?
Padre Júlio – Como Vicariato da População de Rua acho que só São Paulo tem e foi criado, como você bem lembrou, por Dom Paulo. Em outras dioceses há a pastoral do Povo de Rua. No âmbito da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), são as pastorais sociais e uma Articulação Nacional da Pastoral de Rua. As pastorais de rua das várias dioceses, inclusive o Vicariato de São Paulo, fazem parte dessa articulação nacional e das pastorais sociais da Igreja no Brasil.
EC – Voltando ao caso do deputado que tem feito uma campanha contra o senhor. Ele diz que não, mas a retórica acabou insuflando uma série de pessoas a lhe ameaçar. Mais, ele agora lhe chama de farsa e diz que vai lhe desmascarar. Não teme algo como, por exemplo, as insinuações de pedofilia nunca comprovadas que lhe fizeram em 2007?
Padre Júlio – Não é só que elas não foram comprovadas. O que se viu é que elas eram falsas. Tanto é que as pessoas que fizeram essas acusações tinham motivos criminosos e foram condenadas. Pegaram sete anos de cadeia. Eu acredito que isso deva servir de alerta no sentido de que as pessoas entendam que fake news, informações inverídicas, têm consequências jurídicas. De que acusações inverídicas têm consequências e devem ser vistas com clareza dessa forma, como falsidades que têm consequências jurídicas e que as pessoas têm que responder por elas. Agora, a gente nunca tem certeza de que vão usar fake news ou não, mas sempre temos que estar alertas.
EC – O senhor por causa do seu trabalho já chegou a apanhar da polícia. Volta e meia lhe surgem, como agora, ameaças de morte. Tem alguma ideia de quantas ameaças recebeu durante o seu ministério?
Padre Júlio – Olha, dos que já vieram me avisar que tinham pessoas que queriam me matar, mas não conseguiram, que não tiveram êxito, foram quatro casos. Já as ameaças, essas são incontáveis. Eu não consigo contar quantas ameaças eu já recebi.
EC – Como é passar por isso?
Padre Júlio – É uma situação desafiadora e difícil de vivenciar. Mas isso não pode tirar de nós a esperança e a coragem de enfrentar os desafios. Não há caminho de libertação sem enfrentamento, sem desafio e sem dificuldade.