MOVIMENTO

STF recua e suspende julgamento do marco temporal

Processo de repercussão geral sobre direito dos povos originários à terra foi retirado da pauta pelo presidente da corte e ainda não tem previsão de ir a plenário
Por Gilson Camargo / Publicado em 23 de outubro de 2020

Foto: Fábio Nascimento /MNI

Foto: Fábio Nascimento /MNI

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Fux, decidiu retirar da pauta de julgamento agendado para o dia 28 de outubro o Recurso Extraordinário 1.017.365 relativo a um processo contra uma parcela da demarcação da terra Lá Klaño, do povo Xokleng, de Santa Catarina. A assessoria do Supremo informou que não houve pedido de vistas ao processo e que o adiamento foi um procedimento de rotina devido ao acúmulo de pautas polêmicas na data prevista. Para muitas lideranças, no entanto, o recuo do STF foi estratégico para incluir o ministro bolsonarista Kassio Marques, que deverá ser empossado na cadeira de Celso de Mello, e se deve à pressão de pecuaristas e grandes empresas que patrocinam a disputa de terras no país. A decisão frustrou as expectativas de entidades e lideranças de todo o país que iniciaram uma grande mobilização para acompanhar o julgamento em Brasília. Isso porque o processo ficou caracterizado como de “repercussão geral”, já que demarca um entendimento jurídico quanto à manutenção dos direitos indígenas, conforme estabelece a Constituição Federal de 1988.

DEBATE – Nesta sexta-feira, 23, às 18h, o Jornal Extra Classe promove o debate O julgamento do marco temporal no STF e o impacto para os povos indígenas, com a participação de Deoclides de Paula, cacique da Terra Indígena Kandoia e coordenador kaingang do Conselho Estadual de Povos Indígenas (Cepi); Roberto Liebgott, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul; e Dailor Sartori Junior, assessor jurídico do Conselho de Missão entre Povos Indígenas (Comin) e mestre em Direito e Direitos Humanos.

A mediação será feita por Guilherme Dal Sasso, cientista social e membro da Associação de Estudos e Projetos com Povos Indígenas e Minoritários (AEPIM); e César Fraga, jornalista e editor executivo do Jornal Extra Classe.

A live será transmitida via ECTV, canal do Extra Classe no YouTube, na Página do Extra Classe do Facebook e pelas entidades parceiras no evento: Aepim,  Cimi, Comin,  Fundação Ecarta e Sinpro/RS.

Repercussão geral sobre direito à terra  

O RE 1.017.365 é um pedido de reintegração de posse movido pela Fundação de Meio Ambiente de Santa Catarina (Fatma) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai), requerendo parte das terras indígenas. Em fevereiro de 2019, esse recurso foi reconhecido pelo plenário do STF como de repercussão geral, o que significa que seu resultado repercutirá em todos os processos em que possa haver alegação do marco temporal.

Na prática, o julgamento representa a possibilidade de derrubar a tese do marco temporal defendida por ruralistas e que só reconhece o às terras a povos que ocupavam ou disputavam física ou judicialmente áreas no dia 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. A decisão a ser tomada pelos ministros do STF determinará o resultado de processos estagnados de demarcação de 310 territórios tradicionais e também 537 que ainda nem passaram pela fase de identificação.

Por que o STF adiou o julgamento

Os povos indígenas vêm alertando há muito tempo que o marco temporal é mais um instrumento para o genocídio, diz Liebgott, do Cimi

Foto: Cimi/ Divulgação

Os povos indígenas vêm alertando há muito tempo que o marco temporal é mais um instrumento para o genocídio, diz Liebgott, do Cimi

Foto: Cimi/ Divulgação

“Os povos indígenas têm direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, direitos estes inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis. Os ministros do STF poderão também, a partir desse julgamento, referendar o antidireito, mediante a tese política do marco temporal, que foi forjada para impor a prevalência dos interesses econômicos sobre os direitos indígenas, uma vez que se criou a versão de que povos indígenas podem requerer, tão somente, a demarcação de áreas de terras se nelas estivessem vivendo na data em que foi promulgada a atual Constituição Federal”, avalia Roberto Antônio Liebgott, coordenador do Cimi Sul e um dos painelistas do debate promovido pelo Extra Classe.

Para ele, o adiamento se deve à impossibilidade de contar com o voto dos 11 ministros devido à aposentadoria de Celso de Mello. Seu substituto, Kassio Marques, foi aprovado em uma sabatina na corte e tomará posse nas próximas semanas, devendo ser um dos votantes do Recurso Extraordinário. Liebgott também atribui o recuo às pressões políticas “de ruralistas, de empresários da mineração e do próprio governo federal, que desejam explorar as terras indígenas, mas, neste momento, avaliaram que a composição do STF apontava uma forte tendência de que se julgaria esse processo seguindo os balizamentos constitucionais e, portanto, diante desse contexto, optaram pelo recuo tático, até a posse do novo ministro”.

Ainda de acordo com o representante do Cimi, o adiamento está relacionado à intensa mobilização dos povos indígenas em torno do julgamento . “Há muito tempo não se via tamanha comunicação e articulação dos indígenas, de modo espontâneo e virtual, desde lá, das longínquas aldeias, acampamentos, áreas improvisadas e até demarcadas, propagando suas opiniões, acerca do julgamento, para o Brasil e para o mundo. Foram incontáveis as manifestações pela manutenção da Constituição Federal, pela garantia dos direitos originários e em defesa da vida, da terra e da natureza. De todos os lugares, de quase todas as terras indígenas foram divulgadas mensagens de vídeos, áudios, cartas, documentos exigindo a manutenção dos direitos e contra o marco temporal. As falas, as rezas, os rituais, os apelos de líderes religiosos, de caciques, de homens e mulheres, de jovens, adolescentes e crianças indígenas percorrem o Brasil e o mundo, anunciando que, apesar da pandemia e dos desafios impostos pelo governo brasileiro, os povos fiscalizam, monitoram e lutam pelos seus direitos à terra. Talvez essa, dentre as demais razões pelo adiamento do julgamento, seja a mais relevante e expressiva”, ressalta.

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