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MPF amplia investigações sobre apoio ativo de empresas à ditadura

Folha de S. Paulo, Fiat, Ultra, Ford, Embraer, Gerdau, Itaipu, Volkswagen, Petrobras, General Motors são investigadas pelo MPF por violações de direitos durante a ditadura civil-militar (1964-1985)
Por Flavio Ilha / Publicado em 17 de dezembro de 2020

MPF amplia investigações sobre apoio ativo de empresas à ditadura

Foto: EBC/Divulgação

Foto: EBC/Divulgação

Folha de S. Paulo, Fiat, Ultra, Ford, Embraer, Gerdau, Itaipu, Volkswagen, Petrobras, General Motors. O que essas marcas, muito conhecidas do consumidor brasileiro, têm em comum? Todas, e algumas outras dezenas que ainda serão investigadas, estão na mira da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão do Ministério Público Federal encarregado de apurar a participação de grandes conglomerados econômicos brasileiros em violações de direitos humanos na ditadura civil-militar (1964/1985)

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) apurou, desde 2012, essas violações de direitos humanos, mas os procuradores esbarram na Lei de Anistia brasileira (1979) para propor punições. “Havia uma ampla rede de empresas e empresários trabalhando a favor do regime, com financiamento de operações clandestinas, apoio logístico e repressão nos próprios locais de trabalho”, diz a procuradora federal Eugênia Gonzaga, responsável pelo grupo de trabalho Memória e Verdade da PFDC. colaboração, segundo as investigações preliminares da Procuradoria, não se limitou a apoio ideológico ou mesmo logístico. As empresas perseguiram funcionários opositores ao regime, muitas vezes com consequências dramáticas para eles e para suas famílias. Há relatos de cárcere privado, prisões em locais de trabalho, tortura e mesmo desaparecimento de funcionários de grandes empresas, incluindo estatais.

Segundo ela, a CNV indicou, em seu relatório final, a colaboração estreita entre regime militar e a elite econômica brasileira, mas não conseguiu, pelas limitações de tempo e recursos, investigar as responsabilidades diretas de cada empresa citada. No “dispositivo político-empresarial-militar”, o relatório cita 128 companhias que tiveram estreita colaboração com a ditadura – das quais 64 ainda existem e são passíveis de algum tipo de responsabilização.

Desfile militar em 1972. Durante o governo Médici (1969-1974) as estruturas de repressão foram reforçadas altamente capilarizadas em toda a sociedade

Foto: Reprodução/Arquivo Nacional

Desfile militar em 1972. Durante o governo Médici (1969-1974) as estruturas de repressão foram reforçadas altamente capilarizadas em toda a sociedade

Foto: Reprodução/Arquivo Nacional

O primeiro desafio da PFDC, segundo Gonzaga, é sistematizar essa lista preliminar para deixar claro quem de fato colaborou – e como. Mas há alguns casos notórios, como da Itaipu Binacional, que participou do sequestro e assassinato do embaixador José Jobim em março de 1979. Jobim estava escrevendo um livro de memórias com detalhes sobre o superfaturamento na construção da usina, que custou dez vezes mais que o previsto. O Estado brasileiro reconheceu o assassinato de Jobim em 2018.

O caso reapareceu na primeira audiência pública virtual realizada pela PFDC sobre o tema no final de novembro, que reuniu um grupo de 50 pesquisadores de várias instituições brasileiras. Entre outras suspeitas sobre a estatal de energia está a perseguição e desligamento de servidores suspeitos de se oporem ao regime, como a secretária Sônia Lúcia Castanheira. Demitida em 1977 acusada de subversão, Castanheira foi reintegrada à empresa em 2017 em decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

As empresas colaboraram com as Forças Armadas na perseguição de funcionários opositores ao regime, muitas vezes com consequências dramáticas para eles e para suas famílias

Foto: Reprodução/Arquivo Nacional

As empresas colaboraram com as Forças Armadas na perseguição de funcionários opositores
ao regime, muitas vezes com consequências dramáticas para eles e para suas famílias

Foto: Reprodução/Arquivo Nacional

Caso Volkswagen

Em setembro, a Volkswagen assinou um termo de ajustamento de conduta (TAC) com o MPF em que se compromete a pagar R$ 36,6 milhões como reparação pelos graves casos de violação dos direitos humanos. Os recursos serão em parte usados para novas investigações da PFDC sobre a participação de empresas na repressão a trabalhadores e também em iniciativas de elucidação da verdade, como o grupo de estudos que busca identificar presos políticos enterrados em vala comum no cemitério de Perus, em São Paulo.

Segundo a PFDC, a estimativa é de que a ação direta da Volkswagen na repressão aos opositores do regime tenha atingido cem trabalhadores da empresa. Um deles foi o militante comunista Lúcio Bellantini, preso e agredido em 1972 dentro da unidade fabril de São Bernardo do Campo e posteriormente encaminhado ao Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), onde ficou preso clandestinamente por nove meses.

A Volkswagen assinou um termo de ajustamento de conduta (TAC) com o MPF em que se compromete a pagar R$ 36,6 milhões como reparação pelos graves casos de violação dos direitos humanos

Foto: Volkswagem do Brasil/Divulgação

A Volkswagen assinou um termo de ajustamento de conduta (TAC) com o MPF em que se compromete a pagar R$ 36,6 milhões como reparação pelos graves casos de violação dos direitos humanos

Foto: Volkswagem do Brasil/Divulgação

O caso Volkswagen teve origem nas audiências da Comissão da Verdade Rubens Paiva de São Paulo e acabou desencadeando toda a posterior investigação da Procuradoria. Em 2015, o Fórum de trabalhadores por verdade, justiça e reparação apresentou denúncia ao Ministério Público Federal, apoiado por todas as dez Centrais Sindicais brasileiras e personalidades de direitos humanos. “Trata-se de uma grande vitória, após muitos anos de negociação. É um reconhecimento inédito”, destaca a procuradora Eugênia Gonzaga.

O acordo envolvendo a Volkswagen, entretanto, gerou descontentamento justamente nos precursores da ação. O grupo de sindicalistas e pesquisadores que desde 2015 movia três processos contra a multinacional automobilística criticou, entre outras coisas, a recusa da empresa em construir um centro de memória de trabalhadores, que já estava em negociação com a Prefeitura de São Paulo, e em formular um pedido de desculpas formal pela ativa participação nos atos repressivos do governo militar.

“O que incomoda a Volkswagen é a imagem e o marketing. As doações ajustadas serão tratadas pela empresa como uma benevolência, um benefício unilateral, e não como uma reparação por sua cumplicidade com a ditadura. Nesse sentido, a empresa sairá limpa dessa história”, pontua Sebastião Neto, coordenador do IEEP (Intercâmbio, informação, Estudos e Pesquisas) do projeto Investigação Operária.

O principal empecilho para as responsabilizações criminais de graves violações aos direitos humanos é a Lei de Anistia, de 1979. Elaborada como um acordão para livrar de punição os agentes do Estado que se envolveram em crimes de sequestro e assassinatos, a lei sofreu um baque em 2010 quando a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão da OEA, determinou que a anistia não se enquadra para crimes que envolvam graves violações aos direitos humanos. A reinterpretação está parada no STF desde 2011.

Atualmente, cerca de 40 processos criminais tentam responsabilizar agentes públicos por esses crimes, movidos no âmbito do Ministério Público Federal. A Justiça tem negado boa parte das ações. “A questão de fundo é ideológica. É só ler com cuidado os despachos e votos do ministro Marco Aurélio [relator da ação] para entender do que se trata. Além do mais, no Brasil não houve transição, mas uma vergonhosa transação. Avalizadas também por Lula e Dilma”, destaca o presidente do Movimento de Justiça de Direitos Humanos, Jair Krischke.

Caso Farsul

Atualmente, cerca de 40 processos criminais tentam responsabilizar agentes públicos por esses crimes, movidos no âmbito do Ministério Público Federal; na foto, manifestação de estudantes em 1977

Foto: Reprodução/Arquivo Nacional

Atualmente, cerca de 40 processos criminais tentam responsabilizar agentes públicos por esses crimes, movidos no âmbito do Ministério Público Federal; na foto, manifestação de estudantes em 1977

Foto: Reprodução/Arquivo Nacional

No Rio Grande do Sul, chama a atenção nesse contexto a participação ativa da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (a poderosa Farsul) tanto na articulação do golpe quanto nos seus desdobramentos. A professora de História da Universidade Federal de Pelotas Alessandra Gasparotto, que integra a Comissão Camponesa da Verdade, diz que os registros de violência no campo explodem no estado no período imediatamente anterior ao golpe militar.

“Há um incremento muito grande da violência, isso desde antes do golpe, a partir de 1962, 1963, com assassinatos e repressão a movimentos organizados na luta pela terra. E a violência patronal e de Estado se misturam, o limite entre as duas é muito tênue”, revela a pesquisadora. Autora de uma tese de doutorado sobre o tema, Gasparotto cita uma declaração do presidente da entidade em     1964, Oscar Carneiro da Fontoura, recomendando entre os associados da entidade “a arregimentação de elementos de confiança para colaborar com a ação policial” de repressão aos camponeses. Segundo Gasparotto, é uma inequívoca formação de milícia.

A pesquisadora argumenta que a reparação dos efeitos da violência no campo é bem mais complexa que a apuração de responsabilidades em áreas urbanas e industriais, como vem fazendo a PFDC. “No campo, a violência geralmente não deixa registros”, sentencia. Segundo a Comissão Camponesa da Verdade, 1.196 camponeses foram mortos ou constam como desaparecidos entre 1961 e 1988 no país. Além disso, 663 foram submetidos a Inquérito Policial-Militar. Do total de mortos e desaparecidos, apenas 51 famílias apresentaram requerimentos de reparação – dos quais 29 foram deferidos: um índice de 2,5%.

“As ações que começam a ser investigadas pela PFDC nos enchem de esperança para que a justiça de transição possa avançar no país. É um passo importante, mesmo que nós saibamos que há muitos limites legais para concretizar essas responsabilidades. É preciso acabar com a impunidade e com o silenciamento que envolve esses crimes”, pondera Gasparotto.

Na Argentina, foi aprovada em setembro uma lei que devolve o vínculo de emprego em empresas privadas de trabalhadores assassinados por motivação política entre 1976 e 1983, período da ditadura militar no país que resultou em mais de 30 mil mortos e desaparecidos. Isso significa restituir todos os direitos devidos aos familiares das vítimas do regime, que operava em consonância com as ditaduras brasileira, uruguaia e chilena no âmbito da Operação Condor.

A iniciativa também vai ajudar nos processos judiciais em marcha contra empresas que costumavam colaborar com a ditadura, algumas até com centros clandestinos de detenção. A criação da lei é resultado da articulação entre centrais sindicais, governo e sociedade.

A Comissão Nacional da Verdade indicou a colaboração estreita entre o regime militar e a elite econômica brasileira

Foto: Reprodução/Arquivo Nacional

A Comissão Nacional da Verdade indicou a colaboração estreita entre o regime militar e a elite econômica brasileira

Foto: Reprodução/Arquivo Nacional

 

 

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