MOVIMENTO

Mobilização contra marco temporal denuncia violência de gênero nos territórios indígenas

Marcha das Mulheres Indígenas que acompanha julgamento no STF sobre demarcação de terras lembra assassinatos de meninas no RS e MS
Da Redação / Publicado em 9 de setembro de 2021

Foto: Raissa Azeredo/ Divulgação

Movimento organizado por 4 mil mulheres promove marcha no dia 10 para pressionar ministros do STF contra o julgamento do marco temporal – que ameaça acabar com a demarcação de terras indígenas no país

Foto: Raissa Azeredo/ Divulgação

Mais de 1,2 mil representantes de povos indígenas permanecem em Brasília para pressionar pela rejeição ao marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal. O movimento se somou às cerca de 4 mil mulheres que participam da II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas iniciada no dia 7, com mobilizações até o dia 11 na capital federal.

Nesta quinta-feira, 9, elas fizeram um ritual em memória póstuma às meninas indígenas Daiane Griá Sales Kaingang e Raissa Guarani Kaiowá, adolescentes violentadas e mortas no Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul no início de agosto, quando começaram as mobilizações indígenas em Brasília. Mulheres indígenas de todo o país fizeram atos e lançaram manifestos à época, denunciando o contexto violento de vulnerabilidade a que estão submetidas.

“Falar sobre violência de gênero nas comunidades e aldeias e entre povos indígenas é um processo doloroso, que ainda pode ser considerado um tabu dentro das comunidades. Apesar da gente viver todos os dias isso dentro do território, seja pelo machismo imposto, seja pelos projetos que insistem em adentrar em nossos territórios com seus projetos desenvolvimentistas”, relata Nyg Kaingang, liderança indígena da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga).

Ela lembra que as pautas que norteiam o segundo dia de programação da Marcha e também toda a luta das mulheres indígenas no país caminham juntas. Por isso, lutar contra a violência de gênero, patriarcado e contra a inconstitucional tese do marco temporal implica diretamente na proteção e autonomia dos territórios indígenas no Brasil.

“Hoje a gente trouxe esse contexto, da violência, iniciando a marcha com uma homenagem póstuma. Não adianta pensar na demarcação de terra indígena se não pensar primeiro esse respeito aos corpos territórios das mulheres indígenas. Porque tudo inicia ali. Com o marco temporal, é retomado o genocídio, esse feminicídio que no Brasil acontece há 520 anos contra as mulheres indígenas, negras e hoje também com as não indígenas, uma vez que o Brasil naturaliza a violência como cultura. Então isso tá presente, por isso que a gente precisa tá aqui marchando, por isso que a gente precisa falar”, reforça Nyg.

Julgamento sobre marco temporal

Durante a tarde, a partir das 14h, todo o acampamento se concentrou na tenda principal para assistir a transmissão do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que pode decidir o futuro das demarcações de terras indígenas em todo o país.

O julgamento tem como um dos principais pontos a discussão sobre a inconstitucionalidade da tese do marco temporal. A expectativa é de que os ministros rejeitem a tese, reafirmando o caráter originário dos direitos territoriais dos povos indígenas e a tradicionalidade da ocupação como único critério para as demarcações, conforme previsto na Constituição Federal de 1988.

Com um telão instalado na tenda principal do acampamento, as mulheres indígenas reservaram parte da programação para acompanhar a sessão no STF que, de maneira frustrante, foi encerrada mais uma vez sem iniciar os votos dos ministros sobre o mérito do processo.

Foto: Rede de Comunicadores da Coiab/ Divulgação

Ritual lembrou Daiane Kaingang e Raíssa Kaiowá, meninas indígenas assassinadas no início de agosto

Foto: Rede de Comunicadores da Coiab/ Divulgação

Para as mulheres indígenas “guerreiras da ancestralidade”, a demarcação dos territórios é uma garantia de segurança para os corpos das mulheres. Por isso, inserir a pauta de gênero diante da discussão da tese do marco temporal, reforça que não somente os territórios indígenas estão ameaçados. “Nosso território é onde nosso corpo está, por isso, precisamos protegê-los”, ressalta Nyg.

Desde que o julgamento foi incluído na pauta do plenário do STF, no dia 25 de agosto, cinco sessões se encerraram sem que a votação fosse concluída.

Após as sustentações orais das partes no processo, das contribuições dos chamados “amigos da Corte” e do Procurador-Geral da República, a retomada do julgamento na quarta-feira, 8, trazia a expectativa de finalmente iniciar os votos dos ministros.

Conforme regimento, o primeiro a votar é o ministro Edson Fachin, relator do processo que julga o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que trata da reintegração de posse movida pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a comunidade Xokleng da Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem indígenas dos povos Kaingang e Guarani.

Após longa apresentação inicial do ministro Fachin, recuperando pontos das sustentações das partes e dos amigos da Corte, além de pareceres contrários e a favor da tese do marco temporal juntados no processo, o presidente da Corte, ministro Luiz Fux encerrou a sessão para que a argumentação sobre o mérito da questão não fosse interrompida por falta de tempo.

Assim, o julgamento foi retomado novamente nesta quinta-feira, a partir das 14h, iniciando com o voto do ministro Fachin.

Na sequência, votam os outros ministros, do mais novo na casa, ministro Kassio Nunes, até o mais velho, o decano do STF, ministro Gilmar Mendes. Também há a possibilidade de um pedido de vistas por parte de algum ministro, o que resultaria na interrupção e no adiamento da votação.

Em sua apresentação inicial, Fachin ressaltou que a discussão sobre a demarcação de terras indígenas é uma “questão constitucional a reclamar pronunciamento” do STF – o que vai de encontro à versão, defendida por ruralistas, de que a Suprema Corte já possui uma jurisprudência definida sobre a questão do marco temporal.

“Esse próprio tribunal, à unanimidade, reconheceu que há questão constitucional de repercussão geral da matéria constitucional controvertida nos autos”, afirmou o ministro, relembrando que os onze ministros foram unânimes, em 2019, ao dar status de repercussão geral ao caso Xokleng.

O IMA pediu, na sustentação oral realizada no dia 1º de setembro, que o recurso em favor do povo Xokleng não fosse conhecido pela Corte, o que encerraria o julgamento. Em sua manifestação, Fachin também negou o pedido do IMA, reafirmando, assim, a validade do recurso movido originalmente pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em favor do povo Xokleng.

Desde 2019, os Xokleng atuam como parte no processo e defendem a tradicionalidade da ocupação da TI Ibirama-La Klãnõ, alvo da ação de reintegração de posse do IMA. Sob o governo Bolsonaro, a Funai, por sua vez, abriu mão de fazer sua sustentação oral em defesa dos indígenas.

Em todo o país, povos indígenas têm acompanhado com atenção o julgamento do STF e se manifestado contra a tese do marco temporal, que é defendida por ruralistas e outros setores interessados na exploração das terras indígenas e busca restringir a demarcação de terras indígenas apenas àquelas que estivessem sob a posse dos povos indígenas em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição.

Os povos indígenas esperam que o STF reafirme seus direitos constitucionais e a teoria do indigenato, consagrada pela Constituição Federal de 1988. Segundo esta tese, o direito dos povos indígenas à demarcação de suas terras é originário, ou seja, anterior à própria formação do Estado brasileiro, e independe de qualquer marco temporal.

Mobilização permanente

Entre os dias 22 e 28 de agosto, seis mil indígenas, de 176 povos de todas as regiões do país, estiveram presentes em Brasília, reunidos no acampamento “Luta pela Vida” para acompanhar o julgamento no STF e lutar em defesa de seus direitos, protestando também contra a agenda anti-indígena do governo Bolsonaro e do Congresso Nacional.

Com o objetivo de seguir acompanhando o julgamento, os indígenas decidiram manter a mobilização em Brasília e nos territórios. Assim, cerca de 1.200 lideranças indígenas, representando seus povos, permaneceram na capital de forma permanente e agora o grupo une forças com a II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas.

Em Brasília ou nos territórios, “estamos em busca da garantia de nossos territórios, das que nos antecederam, para as presentes e futuras gerações, defendendo o meio ambiente, este bem comum que garante nossos modos de vida enquanto humanidade. Para além de mero recurso físico é igualmente morada dos espíritos das florestas, dos animais e das águas da vida como um todo, fonte de nossos conhecimentos ancestrais”, reforça a coordenação da Marcha.

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