MOVIMENTO

Julgamento do marco temporal terá votos de ministros no dia 8

Procurador-Geral da República defendeu a posse da etnia Xokleng na ação de reintegração de posse em Santa Catarina, objeto do julgamento no STF que terá repercussão sobre demarcação de terras indígenas
Por Gilson Camargo / Publicado em 2 de setembro de 2021

Foto: Matheus Veloso/ Apib

Julgamento que pode definir o futuro dos povos indígenas volta para pauta do Supremo na próxima quarta-feira, dia 8 de setembro

Foto: Matheus Veloso/ Apib

O procurador-geral da República, Augusto Aras, foi o último a se manifestar no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365 na última quinta-feira, 2, no Supremo Tribunal Federal. Após as sustentações orais de 39 representantes das partes, da Advocacia-Geral da União, das entidades admitidas no processo e da Procuradoria-Geral da República, a discussão sobre a definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena e do chamado marco temporal (desde quando essa ocupação deverá prevalecer) será retomado na próxima quarta-feira, 8, com o voto do relator, ministro Edson Fachin.

Na sua manifestação, Aras se posicionou em favor do provimento do recurso, a fim de assegurar a posse da etnia Xokleng sobre a área indígena disputada. Aras concorda com o afastamento do marco temporal quando se verificar, de maneira evidente, que houve apossamento ilícito da terra dos índios, como avalia ser o caso.

Ele sustentou que, mesmo não havendo posse por parte dos índios em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, a terra poderá ser considerada como tradicionalmente ocupada por eles. “Em alguns casos, os índios só não estavam na posse da terra exatamente porque haviam sido expulsos em disputas possessórias e conflitos agrários”, afirmou. “Nestes casos, não seria justo exigir o contato físico com a terra daqueles que foram removidos por invasores e lutavam para reconquistá-la”.

Segundo o procurador-geral, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reafirmou que a aplicação da tese do marco temporal contradiz as normas internacionais de direitos humanos porque não leva em consideração os casos em que os povos indígenas foram deslocados à força de suas terras, muitas vezes com violência, razão pela qual não estariam ocupando seus territórios em 1988. “Daí a importância de se admitir o esbulho como exceção ao marco temporal”, salientou.

Em razão da segurança jurídica, o procurador-geral ressaltou que a identificação e a delimitação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios devem ser feitas, a cada caso, mediante a aplicação da norma constitucional vigente a seu tempo. Ele propôs fixação de tese de repercussão geral para definir que o artigo 231 da Constituição Federal impõe o dever estatal de proteção dos direitos das comunidades indígenas antes mesmo da conclusão do processo demarcatório, tendo em vista sua natureza declaratória.

O objeto do julgamento é uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklanõ, onde também vivem indígenas Guarani e Kaingang.

O status de “repercussão geral” dado em 2019 pelo STF ao processo significa que a decisão sobre ele servirá de diretriz para o governo federal e todas as instâncias do Judiciário no que diz respeito à demarcação de terras indígenas, além de servir para balizar propostas legislativas que tratem dos direitos territoriais dos povos originários. Na prática, o marco temporal, se aprovado, colocaria um fim na demarcação de terras indígenas no país.

O impacto do julgamento alcança 30 demarcações de terras indígenas em andamento. No país, a demarcação está pendente para cerca de 197 mil indígenas que ocupam os 11 milhões de hectares de terras não demarcadas.

Agronegócio

Na tarde desta quinta-feira (2), o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) ouviu a manifestação de representantes da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e de outras entidades representativas do agronegócio e dos produtores rurais no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365. Eles se manifestaram em defesa do chamado marco temporal.

Rudy Maia Ferraz, em nome da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), afirmou que a defesa do marco temporal não significa a extinção dos direitos indígenas, mas a compatibilização de direitos. Para Fernando Filgueiras, procurador do Estado de Santa Catarina, a Constituição Federal assegura o direito aos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam. “Não é à toa que o verbo está no presente do indicativo”, afirmou.

Na avaliação de Luiz Fernando Vieira Martins, da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja), não é crível que pessoas que adquiriram terras de boa-fé e em conformidade com a legislação não tenham direito a indenização, na eventualidade de perderem o domínio em razão de demarcação de terra indígena. Ele ressaltou que o impacto econômico direto e indireto será significativo, tendo em vista que a população atingida depende da atividade agropecuária.

Pela Sociedade Rural Brasileira (SRB), Paulo Dorón Rehder de Araújo mencionou que o conceito de esbulho renitente (situação em que os índios não ocupam a terra por terem sido expulsos no passado) é fator de ponderação do marco temporal. Segundo ele, é preciso uma análise ampla da questão, que deve ser flexibilizada para contemplar interesses antagônicos. Para Araújo, a conciliação entre proprietários de terras e indígenas ocorrerá somente mediante a confiança na ordem constitucional estabelecida, ou seja, no STF, que tem a função de realizar ponderações.

Ao representar entidades rurais – Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso do Sul (Famasul), Federação da Agricultura do Estado do Paraná, Sindicato Rural de Ponta Porã, Sindicato Rural de Anastácio (MS), Sindicato Rural de Porto Murtinho (MS), Sindicato Rural de Juti (MS) e Sindicato Rural de Maracaju –, Gustavo Passarelli da Silva afirmou que os interesses envolvidos devem ser levados em consideração na mesma medida em relação aos produtores rurais que são pessoas de boa-fé e adquiriram suas propriedades a justo título e sem contestação de posse. Ele salientou que, com o julgamento, busca-se a preservação da ordem e da segurança jurídicas, com a proteção ao princípio da confiança legítima. Assim, os produtores rurais não podem se ver desamparados diante de processos administrativos conduzidos somente com base em laudos antropológicos, sem considerar o direito de propriedade e de indenização.

Representatividade

Foram admitidas pelo relator no processo 35 entidades que, embora não diretamente envolvidas na causa, têm representatividade em relação ao tema e podem contribuir para o julgamento, com elementos e pontos de vista.

São os chamados amici curiae (plural de amicus curiae, ou “amigos da corte”, em tradução literal). A admissão se dá por meio de requisição das entidades interessadas ao relator, que avalia o pedido e delibera a respeito.

Até agora foram ouvidos 18 dos 35 amici curiae, que refutaram a tese de que os indígenas só teriam direito às terras se estas estivessem sob sua posse na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. A tese ruralista restringe os direitos dos povos e é defendida por empresas e setores econômicos que têm interesse em explorar e se apropriar das terras indígenas.

A tese oposta ao marco temporal é a “teoria do indigenato”, consagrada pela Constituição Federal de 1988. De acordo com ela, o direito indígena à terra é “originário”, ou seja, é anterior à formação do próprio Estado brasileiro, independe de uma data específica de comprovação da posse da terra (“marco temporal”) e mesmo do próprio procedimento administrativo de demarcação territorial.

A teoria do Indigenato é defendida pelos povos e organizações indígenas, indigenistas, ambientalistas e de direitos humanos. “A nossa história não começou em 1988, e as nossas lutas são seculares, isto é, persistem desde que os portugueses e sucessivos invasores europeus aportaram nestas terras para se apossar dos nossos territórios e suas riquezas”, reafirma o movimento indígena. Os indígenas também asseguram seguir “resistindo, reivindicando respeito pelo nosso modo de ver, ser, pensar, sentir e agir no mundo”.

Primavera indígena

Foto: Cicerone Bezerra/ Apib

“Impor sobre nós o ônus de estarmos ocupando nossas terras em 5 de outubro de 1988 é desconsiderar um passado tão recente em que nem sequer tínhamos o direito de escolher nossos próprios destinos”, afirmou o representante da Apib

Foto: Cicerone Bezerra/ Apib

Desde a semana passada, mais de 6 mil representantes de cerca de 180 povos indígenas de diversos estados estão acampados no Distrito Federal e promovem manifestações contra o marco temporal, na maior mobilização indígena pós-constituinte. No documento final do acampamento Luta pela vida, o movimento alerta que a violência e a expropriação de territórios não são uma ameaça somente os povos indígenas, mas toda a humanidade.

“A nossa luta não é apenas para preservar a vida dos nossos povos, mas da humanidade inteira, hoje gravemente ameaçada pela política de extermínio e devastação da Mãe Natureza promovida pelas elites econômicas – que herdaram a ganância do poder colonial, mercantilista e feudal expansionista – e de governantes como o genocida Jair Bolsonaro”, reafirmam.

Futuro em jogo

O representante da Articulação Dos Povos Indígenas Do Brasil (Apib), Luiz Henrique Eloy Amado, afirmou que a Constituição Federal foi categórica ao reconhecer o direito originário dos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas.

No mesmo sentido, Samara Carvalho Santos, do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mipoiba), lembrou que o julgamento do recurso, além de definir uma tese que norteará as demarcações das terras indígenas, também decidirá o futuro das vidas desses povos. “Impor sobre nós o ônus de estarmos ocupando nossas terras em 5 de outubro de 1988 é desconsiderar um passado tão recente em que nem sequer tínhamos o direito de escolher nossos próprios destinos”, afirmou.

Diversidade étnica e cultural

O advogado Paulo Machado Guimarães, em nome da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), ressaltou que os direitos e as garantias constitucionais expressam o respeito à diversidade étnica e cultural.

Para o orador da Defensoria Pública da União (DPU), Bruno Arruda, a tese do marco temporal não é a melhor solução jurídica para o caso brasileiro, pois a relação entre o indígena e a terra não é individualista, e o direito originário sobre as terras é um direito comunitário. Ele também lembrou que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) considera a tese do marco temporal contrária às normas e aos padrões internacionais de direitos humanos.

Justiça social

Segundo Deborah Duprat, representante da Associação Juízes para a Democracia (AJD), a Constituição Federal de 1988 reconheceu aos indígenas direitos plenos, mas, para isso, eles precisam de seus territórios. A seu ver, a presença externa na área indígena deve ser excepcional, e o precedente do STF precisa ser superado, em nome da igualdade e da justiça social.

Pelo Instituto Socioambiental (ISA), Juliana de Paula Batista afirmou que as terras indígenas são fundamentais não apenas para os mais de 300 povos que nelas habitam, mas para toda a humanidade, pois são as áreas mais ambientalmente conservadas do país. “Cerca de 98% da área total das terras indígenas está preservada, e há cerca de 51 milhões de hectares de terras públicas sem destinação só na Amazônia Legal”, afirmou.

Essa extensão, segundo ela, seria suficiente para resolver todo e qualquer impasse relativo à expansão do agronegócio e garantir segurança jurídica na realocação das pessoas que estão nas terras indígenas.

Ocupação ilegal x tradicional

Em nome da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Cezar Britto ressaltou a necessidade de se dar a interpretação originária ao artigo 231 da Constituição para impedir a ocupação ilegal de terras indígenas. Ele destacou que, ao resolver a questão de Raposa Serra do Sol, o Supremo afirmou que as terras que foram objeto de esbulho não estão sujeitas ao marco temporal.

Ivo Cípio Aureliano, representando o Conselho Indígena de Roraima, afirmou que a decisão sobre a TI Raposa Serra do Sol foi fundamental para todos os povos indígenas do país, mas os parâmetros fixados na ocasião dizem respeito apenas àquela situação, sem efeito vinculante sobre os demais processos demarcatórios.

Pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Cristiane Soares de Soares disse que a posse indígena de seus territórios tem natureza jurídica diversa da posse civil, pois decorre diretamente da Constituição Federal, que exige apenas a ocupação tradicional, ou seja, que esteja atrelada aos usos, costumes e práticas culturais de cada povo.

Genocídio

O representante da Fundação Luterana de Diaconia (FLD), Dailor Sartori Junior, mostrou preocupação com a possibilidade de que a concepção de limites temporais cartesianos aumente o risco de crimes de atrocidade. Ele lembrou que, para a caracterização do crime de genocídio, não é necessária a ocorrência de massacres, por se tratar de um processo de muitas etapas. Algumas delas, a seu ver, já ocorrem no Brasil, como discursos desumanizantes, omissões estatais sistemáticas e marco jurídico de proteção insuficiente.

Pela Conectas Direitos Humanos, Julia Mello Neiva observou que a comunidade internacional está atenta ao debate e alerta que a tese do marco temporal ignora o violento histórico de expulsão de povos de suas terras ancestrais. Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a aplicação de marcos temporais perpetua a violência crescente e a prática de atos racistas contra os indígenas.

Vínculo com a terra

Foto: Matheus Alves/ Apib

Constituição reconheceu aos indígenas direitos plenos, mas, para isso, eles precisam de seus territórios, argumentou a representante da Associação de Juízes para a Democracia

Foto: Matheus Alves/ Apib

Luisa Musatti Cytrynowicz, da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), ressaltou que o direito dos povos indígenas às suas terras é um direito fundamental, pois a existência desses povos depende do vínculo com suas terras. Com fundamento no princípio constitucional de não retrocesso social, ela defendeu que não se pode admitir alterações normativas que provoquem retroação dos processos de demarcação em curso.

Aluísio Ladeira Azanha defendeu o entendimento do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) de que a Constituição Federal adotou a ocupação tradicional como critério certo para o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas. Para ele, negar tais direitos é negar também a própria existência física e cultural dos povos indígenas, tendo em vista a absoluta interdependência que têm com seus territórios.

Conflitos territoriais

Em seguida, o procurador Daniel Pinheiro Viegas afirmou que o Estado do Amazonas é contrário à tese do marco temporal, com base no acompanhamento de processos empíricos e na pesquisa científica. Ele ressaltou que o estado, através do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, passou a compreender melhor as várias direções dos conflitos territoriais, muitos dos quais foram solucionados judicialmente graças à não aplicação da tese.

A representante do Indigenistas Associados (INA), entidade associativa dos servidores da Funai, Camila Gomes de Lima, afirmou que o processo de demarcação de terras envolve bases técnicas sólidas, levantamento de documentos e estudos abrangendo histórico de expulsões, massacres, confinamentos, remoções e outras modalidades de violência fundiária. Para a advogada, a tese do marco temporal pretende substituir os critérios técnicos e as investigações antropológicas por um critério arbitrário que não faz sentido na perspectiva dos povos indígenas.

Conservação da biodiversidade

Em nome do Greenpeace Brasil, Alessandra Farias Pereira defendeu o papel das demarcações para a sobrevivência física e cultural dos povos nativos, para a contenção do desmatamento e para as estratégias de mitigação e adaptação das mudanças climáticas. Segundo Alessandra, a Convenção da Diversidade Biológica, do qual o Brasil é signatário, considera a criação de áreas protegidas uma das melhores ferramentas de conservação da biodiversidade e, no Brasil, essas áreas estão sob gestão especial, englobando as unidades de conservação, as terras indígenas e os territórios quilombolas.

Cláusula pétrea

Em nome do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Paloma Gomes considera que existe hoje uma tentativa de invalidar o que foi definido pelo legislador constituinte e pela sociedade brasileira em 1988. Segundo ela, a Constituição definiu que o direito à posse do território indígena originário, por ser anterior a qualquer outro, se sobrepõe a qualquer título de propriedade, e esses direitos são cláusulas pétreas, imprescritíveis, inalienáveis e imutáveis.

No mesmo sentido, Anderson de Souza Santos, que falou em nome do Conselho Aty Guasu Guarani Kaiowa, de Mato Grosso do Sul, defendeu que a tese do marco temporário seja declarada inconstitucional e que os artigos 231 e 232 da Constituição Federal sejam fixados como cláusulas pétreas. Ele afirmou que a falta de território faz aumentar a violência contra os povos indígenas.

*Com informações do STF, Apib e Cimi.

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