Movimento negro alerta para risco de fraude em autodeclarações de candidatos
Foto: Marcello Casal/ ABr
Foto: Marcello Casal/ ABr
Aumento significativo de candidatos autodeclarados pretos e pardos, após nova legislação de distribuição dos recursos do Fundo Eleitoral no Brasil, é questionado pelo movimento negro e por juristas, enquanto novo fórum em defesa da representatividade e diversidade racial avisa que defenderá investigação de possíveis fraudes no último pleito.
Ainda pouco expressiva na prática, a participação de pessoas negras no Parlamento está ameaçada enquanto houver brechas para fraudes no sistema de autodeclaração de candidatos que se registram no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Com o período pós-eleitoral, vem o alerta de integrantes do Fórum Nacional em Defesa da Representatividade e Diversidade Racial, criado logo após o primeiro turno das eleições deste ano.
O Fórum promete investigar a veracidade de cada vaga recém-preenchida no Congresso Nacional e em assembleias legislativas e Câmaras de Vereadores onde há dúvida de possível ludibriação neste sentido.
Não faltam motivos para a desconfiança: após o TSE determinar que os votos dados a mulheres e pessoas negras valem o dobro de pontos na distribuição do dinheiro do Fundo Eleitoral para os partidos, o aumento de candidatos autodeclarados foi histórico.
No entanto, nem todos apresentam as características marcantes da raça.
Das 26.398 candidaturas de pretos e pardos registradas para a corrida eleitoral deste ano, não foram poucos os casos que chamaram atenção pela controvérsia do fenótipo.
“Depois das ações afirmativas, passou a ser conveniente ser negro – e a autodeclaração é um caminho aberto para a fraude.
Pessoas brancas se apresentam sem nenhum tipo de vergonha, como se negras fossem”, dispara o doutorando em Direito na Unisinos Gleidson Renato Martins Dias.
Aumento das candidaturas e das fraudes
“Nota-se que a maioria dos partidos que apresentaram aumento significativo de candidaturas negras são de (idelologia de) direita, justamente os que detestam cota racial”, observa o jurista.
Idealizador do Fórum em Defesa da Representatividade e Diversidade Racial, ele destaca que eleger lideranças do movimento negro no Parlamento brasileiro é a maneira que a população formada por pessoas pretas e pardas tem de garantir representatividade tanto na elaboração quanto na execução de legislação e políticas públicas.
Para que isso ocorra de fato e, na contramão, se evite que uma elite branca se aproprie desta ação afirmativa promovida pelo TSE, o Fórum defenderá a criação de comissões de heteroidentificação após cada pleito político.
“A ideia é trabalhar para banir a afroconveniência, a fraude, o desvio da função teleológica da ação afirmativa de cunho cotista racial”, destaca Dias.
Foto: Igor Sperotto
Mecanismos de controle
“Nós, do movimento negro e ativistas antirracistas, queremos chamar os tribunais regionais eleitorais e também o TSE para analisar os gargalos e, a partir daí, construir mecanismos de controle das informações de para onde estão indo esses recursos públicos usados com o rótulo de promover a igualdade racial nos partidos políticos.”
O jurista adianta que, além de um “regramento” e da implementação de comissões que garantam a análise fenotípica do candidato autodeclarado preto ou pardo, o Fórum (formado também por militantes, ativistas do movimento negro, pesquisadores, integrantes do Ministério Público Federal, defensores públicos, entre outros) deve buscar “resgatar minimamente” os recursos que já foram repassados nesta eleição, em casos em que for comprovado que o beneficiário não é negro.
“Nem sempre o registro equivocado é feito de má-fé”, pondera o procurador da República no Ministério Público Federal, Onésio Soares Amaral. “Existem várias tonalidades de branco e várias de negro, então muitas pessoas se consideram, de fato, pardas.”
Amaral observa que o que deve ser considerado são os traços negroides e a quantidade de melanina.
“A pele é um marcador muito forte: o que caracteriza um indivíduo pardo (que, assim como o negro, é uma pessoa negra) é a pele com um pouco mais de melanina que a pessoa branca, mas com traços da raça, que são a base do nariz alargado, o formato dos lábios, e o cabelo crespo.”
Comissões de heteroidentificação são proposta de movimento
O procurador concorda que a criação de comissões de heteroidentificação na política pode ajudar a evitar “erros grosseiros”. Para ele, é possível que, justamente por conta do racismo, muitos candidatos não tenham se autodeclarado pardos em eleições anteriores – e só agora, com foco no benefício, optaram pelo registro.
“Mas também sabemos que, para além da confusão do povo, existe, sim, a chamada afroconveniência, pois existem casos onde é óbvio que os candidatos não são negros”, ressalta.
“O que deve ser levado em conta, a princípio, é que o racismo no Brasil se dá pela marca (fenótipo) e não pela descendência: se a pessoa não é alvo de preconceito, não é lida pela sociedade como negro (preto ou pardo).”
Instituídas desde 2017 em universidades públicas, as comissões de heteroidentificação para alunos que adentram as instituições por cotas raciais são exemplo de que o caminho da verificação presencial por terceiros é uma solução para o impasse.
Ufrgs reduziu fraudes
Na Ufrgs, por exemplo, o número de fraudes, “apesar de não ter zerado, diminuiu bastante”, garante o coordenador de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas (CAF) da Universidade, Edilson Nabarro.
Presidente da Comissão de Verificação de Autodeclaração na graduação, ele recorda uma denúncia feita em conjunto pelo coletivo negro Balanta, por coletivos indígenas e pelo Movimento Negro Unificado em 2016, quando 319 estudantes foram apontados como fraudadores das cotas.
Chamados a enfrentar uma banca de cinco pessoas para verificação presencial, 90% compareceu e, destes, 90% tiveram o ingresso por cota racial na Universidade indeferido, porque a comissão não os considerou como sujeitos de direito.
“Este episódio demonstra que a autodeclaração não tem valor absoluto: precisa ser comprovada por heteroidentificação”, defende Nabarro.
Segundo ele, a comissão da Ufrgs é composta por docentes, alunos e técnicos, negros e brancos, homens e mulheres.
“Os critérios são as marcas do racismo no Brasil: cor da pele, nariz, boca, cabelo com traços negroides”, reforça o coordenador do CAF/Ufrgs. Ele concorda que muitos políticos que se elegeram registrados como pretos e pardos seriam retratados se passassem por uma banca de verificação presencial.
Movimento defende comissão antifraude
Na opinião do representante da União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro), Dilmair Monte, no caso das candidaturas políticas “as falcatruas” também ocorrem por conta de que a lei obriga que todos os partidos tenham cotas para negros, mas, muitas vezes, estes não preenchem este requisito por falta de representatividade.
“É indignante: as pessoas se aproveitam de uma situação que foi conquistada pela luta dos outros e se apropriam de ações afirmativas.”
Ele também avalia que “as cotas existem entre aspas, mas não são repassadas para as candidaturas negras na sua totalidade, a não ser que o candidato já tenha uma certa trajetória, o que é raro – como no caso destes que se elegeram recebem porque têm mandato.”
O TSE informa que no artigo 350 do Código Eleitoral está previsto que “inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais gera pena de reclusão de até cinco anos e pagamento de cinco a 15 dias de multa, se o documento é público; e reclusão até três anos e pagamento de três a dez dias de multa, se o documento é particular”.
Foto: Igor Sperotto
TSE precisa ser provocado
No caso de dúvidas sobre fraude, o TSE não age de ofício e, sim, precisa ser provocado para fazer análise de possíveis irregularidades na autodeclaração racial. “Recebimentos de denúncias ou investigações de irregularidades de candidaturas eleitorais ficam a critério do Ministério Público Eleitoral (MPE)”, destaca o órgão.
“Não há uma comissão para esse tipo de identificação. Importante registrar que os pedidos de registro de candidatura são analisados pelo juiz eleitoral. Apenas após a finalização do pleito eleitoral (2º turno), poderemos avaliar os efeitos práticos das ações afirmativas para a autodeclaração.”
A assistente de gabinete da presidência do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul (TRE/RS), Karen Fróes, lembra que também os partidos oponentes podem entrar com processo de impugnação da candidatura de quem mentir na autodeclaração.
Ela ressalta que, após o que se viu no último pleito, já está ocorrendo um movimento na Justiça Eleitoral para que exista uma instância dentro do tribunal (como acontece no concurso público do órgão), onde o candidato passa na comissão de deferimento da fenotipia.
“É tudo muito recente, mas acredito que estamos caminhando para que sejam implementadas comissões de heteroidentificação nos tribunais eleitorais”, avalia a assistente.