Indígenas urbanos lutam por reconhecimento e acesso às políticas públicas
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Em meio à movimentação em torno da promessa de criação do Ministério dos Povos Originários, comunidade de indígenas urbanos estabelecida no Rio Grande do Sul afirma que mais de 315 mil descendentes em todo o país vivem nas cidades e seguem sofrendo invisibilidade e preconceito por descrédito sobre suas origens.
Em um universo de mais de 900 mil indígenas espalhados por todo o Brasil (segundo o Censo de 2010) que celebram a criação de um Ministério dos Povos Originários, prometido pelo presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, um terço desta população teme seguir vivendo às margens da sociedade, por conta do apagamento que leva ao descrédito sobre suas origens.
São mais de 315 mil descendentes em todo o Brasil, que habitam o contexto urbano com dificuldade de acesso a políticas públicas, e que sofrem, diariamente, preconceito e invisibilidade. Os números ainda serão atualizados no próximo Censo, o qual deve ser publicado ainda em 2022, portanto, esse universo pode ser maior.
No Rio Grande do Sul, a liderança da única entidade criada em todo o país para representar os descendentes que vivem nas cidades tem chamado atenção para os dados, uma vez que os números apresentados para a população indígena do Brasil também podem ser subestimados.
Isso porque, em muitos casos, há quem se declare pardo na tentativa de fugir do preconceito, ou mesmo por falta de autorreconhecimento étnico. “Esse grito de pertencimento que foi silenciado já entre os nossos ancestrais é também de pessoas indígenas-afro que vivem fora do contexto das aldeias e quilombos”, destaca a cacica Kerexu Takuá – também conhecida por Alice Guarani –, coordenadora do Centro de Referência Indígena-Afro do Rio Grande do Sul (Cria-RS).
“A discriminação ocorre porque a maioria das pessoas entende que perdemos nossos costumes pelo fato de vivermos na cidade.”
A liderança da cacica Alice
A cacica Alice também coordena o Levante Indígena Urbano do Rio Grande do Sul e a Rede Indígena POA, criada para recolher donativos para mulheres indígenas. Integrante da Articulação Nacional de Indígenas em Contexto Urbano e Migrantes e da Grumin – Rede de Comunicação Indígena, ela começou sua trajetória nos movimentos sociais quando tinha 12 anos de idade.
Em 2018, foi a primeira mulher indígena Guarani a ingressar pelo sistema de ações afirmativas na Universidade Federal de Pelotas, para cursar Pedagogia.
Idealizadora do Cria-RS – o qual surgiu a partir de um processo de ocupação para retomada de território indígena na capital –, ela agrega no local mulheres integrantes dos povos Guarani, além de quilombolas e indígenas Warao. O núcleo da comunidade conta com mais de 40 pessoas, que discutem a questão territorial desde 2017, através de diversas ações.
Situado na Travessa Comendador Batista, no bairro Cidade Baixa, o local é mais que um território de cruzamentos de caminhos indígenas originários da periferia de Porto Alegre, do Amazonas e da Venezuela. Especialmente no que diz respeito ao povo Guarani-Mbyá, o Centro de Referência Indígena-Afro acolhe mulheres indígenas que transitam entre as aldeias próximas e o centro urbano da capital, vendendo seus artesanatos.
Foto: Igor Sperotto
Indígenas urbanos lutam por reconhecimento
“O reconhecimento do corpo e do território, independente do contexto, é a nossa principal reivindicação”, destaca a cacica. Ela sinaliza que cerca de 7% da comunidade indígena vive em periferias – e não em aldeias. “Cada vez mais, as mulheres indígenas nos procuram para fazer parte do Centro e retomar suas origens”, informa. Esse é o caso da professora de dança Caroline Mendes Pereira (36 anos), cuja família é da fronteira de Uruguaiana e veio para Porto Alegre em 1986, quando se estabeleceu na zona rural.
Foi a partir dos 30 anos e de capacitação e busca por conhecimento que Caroline se entendeu como afro-indígena (filha de mãe descendente de negros e pai descendente de indígenas). “Até então, quando preenchia um formulário, por exemplo, ficava em dúvida me perguntando se no meu caso eu era parda, pois minha família não tem referências históricas e meus pais também não tinham conhecimento da identidade deles.”
A professora de dança declara que até mesmo a linguagem que utiliza em seu trabalho e tudo o mais no seu dia a dia e modo de viver “passou a fazer sentido” quando conseguiu resgatar as memórias ancestrais e, assim, se “empoderar”.
“Participar do Cria-RS é estar vivendo na prática a possibilidade real de ser vista e não ser novamente silenciada”, confessa, embasando a importância do projeto de luta por reconhecimento de corpos e territórios indígenas em contexto urbano.
Foto: Igor Sperotto
Rodas de conversas
Estudante de Psicologia, Luisa Severo da Silva (23 anos) também participa das rodas de conversas promovidas semanalmente pelo Centro de Referência Indígena-Afro. “Eu sou de uma família de classe média e meu pai tem muito envolvimento na luta da comunidade negra”, explica. “Estas questões de identidade sempre foram muito presentes na minha vida, mas foi durante a pandemia de Covid-19 que eu busquei minhas referências, inclusive no que se refere à identidade de gênero, pois sou uma mulher trans.”
O fato de não ter aparência indígena foi um dos motivos pelos quais Luisa não fazia ideia de sua verdadeira ancestralidade.
“Apesar de não ter o reconhecimento de muitas pessoas, pelo fato de eu não possuir o fenótipo indígena, eu me sinto pertencente e lamento que muita gente não faça ideia de suas origens, porque essas coisas são silenciadas na nossa sociedade – e assim, as pessoas vão perdendo suas identidades. Considero muito importante que se faça um resgate entre os indígenas não aldeados”, finaliza.
Mulheres indígenas
“Independente do contexto onde as mulheres indígenas estejam, a criação de mais espaços de formação, moradia, e acolhimento, a exemplo do CRIA-RS, deveria ser a primeira demanda a ser tratada no Ministério dos Povos Originários”, opina a cacica Kerexu Takuá.
Ela pontua que, neste momento, as articulações promovidas em vários âmbitos e também pelo prometido Ministério dos Povos Originários devem passar pelo resgate dos direitos perdidos pelos povos indígenas, com a “série de retrocessos” gestionada pelo governo de Jair Bolsonaro, “que fez com que as poucas políticas públicas destinadas aos povos originários fossem desmanteladas”.
Paralelamente, Alice reforça a necessidade de se ampliar a discussão sobre políticas públicas também para mulheres indígenas-afro que vivem nas cidades.
“Além da Educação e da Cultura para mulheres indígenas em território urbano, outra questão que reivindicamos é a melhoria do atendimento à saúde. Por estarmos na cidade, não somos incluídas na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e precisamos usar o SUS, onde sofremos uma série de preconceitos”, alerta.
Povos originários demandam representatividade também em outros ministérios
A coletividade dos movimentos indígenas do Brasil é unânime: a criação de um Ministério dos Povos Originários é um “grande avanço”, mas não pode ficar restrita a isso. Marco histórico da política nacional, a iniciativa que visa reunir as demandas indigenistas não é considerada suficiente, porque todas as outras áreas precisam ser pensadas com a perspectiva desta inclusão, explicam lideranças de diferentes regiões do país.
“É preciso trabalhar a questão da igualdade, e não se articular em prol de benefícios e diferenciais”, argumenta a atriz, dramaturga, escritora, poetisa, arte-educadora e bacharel em Direito, Bete Morais. Indígena Desana do noroeste do Amazonas, ela pondera que o aceno de um ministério próprio é “um sonho” antigo dos povos indígenas. “Todos estamos muito felizes, numa grande expectativa e torcendo para que dê certo. Existem muitas demandas a serem expostas, que quase ninguém conhece.”
A arte-educadora destaca que somente no Amazonas existem 23 etnias diferentes, as quais vivem realidades muito diversas.
Além da necessidade de apoio do governo para atividades desenvolvidas na floresta, como o extrativismo, Bete abre um leque de outras demandas – relacionadas à Educação, Saúde, e Cultura dos indígenas, mas afirma que, para além de expor necessidades, os povos originários têm muito conhecimento, valores e ciência para contribuir “em prol de uma sociedade mais plural” no Brasil.
Expectativas com o próximo governo
Para o dirigente da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Toya Machineri, a participação direta dos indígenas já na equipe de transição (com 13 representantes de todos os estados brasileiros) servirá para ajudar na “articulação no primeiro ano de governo, uma vez que não se tem recursos”.
“É fundamental pensar como será a participação dos indígenas em outras áreas administrativas, além de trabalhar o básico, que é a restauração da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e da Sesai”, reforça o dirigente.
Lembrando que o governo Bolsonaro irá “ficar na história por ter destruído direitos com diversas medidas provisórias e aniquilado um processo de anos de negociações em Brasília, além de suspender o processo de demarcação de terras indígenas”, assegura o coordenador Kaingang do Conselho Estadual de Povos Indígenas (Cepi), Deoclides de Paula, que registra ainda que o atual presidente reduziu o orçamento da saúde indígena em 60%.
“Essa é uma demanda urgente: a liberação do valor bloqueado, e que, daqui a dois anos, seja possível que estes recursos aumentem para melhorar a saúde indígena, que ainda é muito precária.”
O coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi-Sul), Roberto Liebgott, destaca que, para além de pensar estratégias conjuntas no sentido da demarcação de territórios indígenas e que assegurem políticas públicas que respeitem o modo de ser de cada povo, seria importante uma articulação semelhante para quilombolas, quebradoras de coco, pescadores, ciganos, entre uma série de outras comunidades tradicionais.
“Nosso trabalho é assessorar a causa indígena, e estaremos atentos aos processos”, garante.
“Desde o golpe que a ex-presidente Dilma Rousseff e o povo brasileiro sofreram, a situação dos povos originários piorou muito”, destaca o presidente da Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Mato Grosso (Fepoimt), Crisanto Xavante.
Ele chama de “louvável” a criação do novo ministério, porém adverte que a atual configuração do Congresso Nacional “não favorece” a questão indígena. “Ainda assim, estamos trabalhando com firmeza e ‘pé no chão’, para que possamos retomar tudo que nos foi subtraído ao longo dos anos”, emenda.
“Queremos estar presentes nos espaços sociais, conselhos, ministérios do Meio Ambiente, da Agricultura, da Igualdade Racial, da Justiça, entre outros, para que, de alguma forma, a voz de todos os indígenas possa ser escutada.”