ONGs estão na linha de frente no combate à fome em Porto Alegre
Foto: Babiton Leão
De segunda a sexta, a Fundação Fé e Alegria do Brasil RS garante almoço e lanche para os netos de Maria Helena, moradora do bairro Farrapos que mora com cinco netos e depende do Auxílio Brasil para sustentar a família. Estando em condição de vulnerabilidade, aos finais de semana, a comida precisa ser calculada entre os membros da família.
A mesma realidade é vivida por quatro das 127 crianças atendidas pela instituição do bairro Farrapos, capital de Porto Alegre.
Através de repasses de alimentos da Prefeitura de Porto Alegre — sacola econômica e cesta básica — e com um espaço cedido pela Arquidiocese de Porto Alegre capaz de receber 112 crianças, a Fundação Fé e Alegria do Brasil RS atende os registrados pelo Centro de Referência de Assistência Social (Cras).
Diante do aumento dos casos de insegurança alimentar na capital do Estado, e com alguns beneficiários pulando a etapa de registro, o número de crianças atendidas pela instituição saltou de 112 — o limite da instituição — para 127.
Os alimentos obtidos pelos repasses do poder público municipal tornaram-se insuficientes, fazendo a ONG depender de alimentos entregues por doadores espontâneos para atender todas as crianças.
A Fundação Fé e Alegria não é a única ONG presente na capital gaúcha que atende crianças em situação de vulnerabilidade. Com base nos dados coletados junto ao SESC, hoje, são 229 instituições cadastradas no Mesa Brasil, braço do SESC responsável pela distribuição dos repasses da Prefeitura às instituições. Localização das 229 instituições cadastradas na instituição podem ser conferidas no link.
Alexandre Santos, pedagogo voluntário da Movimento Infância Melhor (MIM), ONG inscrita no Mesa Brasil — que combate fome infantil de crianças entre 6 a 14 anos de idade que vivem no bairro Bom Jesus, comenta a dificuldade de manter o atendimento das 100 crianças no contraturno da escola com almoço, café da manhã e café da tarde.
“Atualmente a ONG tem um convênio com a prefeitura que disponibiliza recursos, mas esse recurso só dá para meio mês. Hoje é através dos voluntários que a MIM consegue dar uma alimentação adequada para todas as crianças” — explica Alexandre.
Até setembro de 2022, o Mesa já havia realizado repasses de 56 toneladas de alimentos vinculados ao Programa de Aquisição de Alimentos e 7 toneladas de alimentos arrecadados na Campanha POA que DOA.
A responsabilidade do Estado prevista na legislação
O presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do RS (Consea-RS) — órgão responsável por propor Políticas Públicas de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável a partir da articulação entre o governo e a sociedade civil — , Juliano de Sá, diz que a atuação de combate a fome competem legalmente ao Estado brasileiro, tornando as iniciativas da sociedade civil em combater a fome complementares.
“A alimentação é um direito constitucional previsto no artigo 6° da constituição federal, a obrigação é do Estado brasileiro (União, estados e municípios)” — explica Juliano. O presidente do Consea-RS explica que o estado brasileiro tem sido vítima de cortes orçamentários de políticas públicas de combate à insegurança alimentar.
“Há, principalmente, no âmbito da federação, que acabou com políticas públicas estratégicas para o combate à insegurança alimentar, atingindo, em certa medida, gestores municipais”, comenta Juliano.
A Assistente Social e Coordenadora Executiva do Movimento Rio Grande Contra a Fome, que visa ampliar o enfrentamento à insegurança alimentar e nutricional no Rio Grande do Sul, Paola Loureiro Carvalho, entende que a prefeitura está falhando no atendimento à população mais vulnerável.
“É muito aquém da demanda. Ousaria dizer que todas as entidades que competem nesta pauta têm listas de espera, isso para não dizer do déficit de vagas de educação infantil em Porto Alegre — Paola Loureiro Carvalho
A volta do Brasil ao Mapa da Fome
Contemplando a métrica da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) para enquadrar um país no Mapa da Fome — calculada em torno de 2,5% da população em condição de insegurança alimentar grave — e os resultados obtidos pela pesquisa Estado de Alimentação e Nutrição do Mundo (Sofi 2022) — que totaliza 7,3% da população brasileira com algum grau de insegurança alimentar em 2022 -, Fernanda Castilhos França de Vasconcelos, bacharela em Ciências Econômicas, Mestra em Desenvolvimento Rural e doutoranda em Desenvolvimento Rural contextualiza a conjuntura que levou o Brasil a retornar ao Mapa da Fome em 2022, após ter saído em 2014.
“Podemos apontar causas conjunturais globais: a crise sanitária causada pela pandemia de Covid-19, a guerra entre Ucrânia e Rússia, eventos climáticos extremos e uma crise econômica nos países do Norte global que se arrasta desde 2008. Estas causas não são desprezíveis, pelo contrário, é inevitável que impacte o Brasil em maior ou menor medida, mas não são as únicas, nem as mais impactantes” — explica Fernanda.
A economista aponta que os cortes nas políticas públicas, sobretudo os relacionados à segurança alimentar e nutricional, foram feitos pelos governos nacionais vigentes desde 2016. Tais movimentos enfraqueceram ou dissolveram os projetos políticos e sociais de combate à fome no Brasil em nível federal, estadual e municipal.
“Desde 2016 vivemos um desmonte de políticas públicas no Brasil, tanto sociais como políticas de segurança alimentar e nutricional, o que significa que enfrentamos todas as crises citadas anteriormente sem um sistema de proteção social minimamente adequado.
Em 2019 o presidente Bolsonaro desmanchou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) em âmbito federal, que além de um órgão consultivo e propositivo, fiscalizava as ações do governo para a segurança alimentar da população brasileira”, diz Fernanda.
A acadêmica acrescenta o impacto da inflação na renda dos mais pobres — que destinam um percentual maior da sua renda para a alimentação — através da crescente desvalorização do Real, tornando necessária a escolha por alimentos com menor teor nutricional — soro de leite, ossos, ultraprocessados.
“Essa inflação não é gerada por uma falta de alimentos no mercado, mas sim por priorizar o mercado internacional de commodities. Isto imputa ao país uma necessidade de importar alguns alimentos básicos para os brasileiros, como o feijão, por exemplo” — Fernanda Castilhos França de Vasconcelos.
Leia também:
PARTE 1 — Mulheres, crianças e negros são os que mais sofrem com insegurança alimentar em Porto Alegre
PARTE 3 — Investimento na assistência social de POA teve maior queda dos últimos dez anos
Esta reportagem foi realizada na disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da Universidade do Vale do Rio do Sinos – Unisinos, sob a supervisão da professora Luciana Kraemer, no segundo semestre de 2022.
O Extra Classe e a Unisinos firmaram Termo de Cooperação, no início de 2022, para a veiculação no jornal de reportagens produzidas pelos estudantes da disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da instituição e o acompanhamento dos estudantes na produção das edições mensais impressas do Extra Classe.