MOVIMENTO

De Evo ao Pachakutik: o que o Brasil pode aprender sobre política indígena

Partidos fortes, união com movimentos de base e plurinacionalidade são alguns dos trunfos de indígenas no Equador e na Bolívia, onde os povos originários alcançaram o protagonismo na política
Por Juan Ortiz / Publicado em 19 de julho de 2023

Foto: Jonathan Miranda/ Presidência do Equador

Cerimônia ancestral e posse que confiou a Guillermo Lasso o bastão de mando, símbolo da cosmovisão andina e de representatividade da autoridade máxima do Equador, onde o protagonismo passa pelo Movimento Pachakutik

Foto: Jonathan Miranda/ Presidência do Equador

Enquanto o Brasil ainda sonha com uma bancada do cocar no Congresso Nacional, onde direitos indígenas são constantemente atropelados, outros países da América Latina estão décadas à frente em representatividade dos povos originários no parlamento. Desde 1995, o Movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik reúne as lutas políticas dos povos originários no Equador e, nas eleições de 2021, elegeu 26 parlamentares. Nos anos 2000, o aimará Evo Morales foi o primeiro presidente indígena da Bolívia e impulsionou o processo constituinte que transformou o país em um Estado plurinacional.

O Equador ainda pode eleger seu primeiro presidente indígena neste ano: Yaku Pérez, da coalizão Claro que se puede. O advogado ambientalista do povo Cañari já ficou em terceiro lugar na última disputa presidencial, perdendo a vaga ao segundo turno por apenas 32 mil votos. Com a dissolução do Congresso em maio por decreto do presidente Guillermo Lasso, novas eleições gerais extraordinárias foram convocadas para agosto. Por enquanto, Pérez aparece em segundo lugar nas pesquisas e já recebeu apoio do Pachakutik e de outros três partidos.

Apesar das diferenças culturais, os exemplos equatoriano e boliviano dão pistas de como é possível fortalecer o movimento indígena dentro e fora da política institucional, para garantir a sobrevivência das culturas originárias.

A voz das ruas

Foto: Conselho Nacional Eleitoral

Yaku Pérez pode ser eleito o primeiro presidente indígena do Equador

Foto: Conselho Nacional Eleitoral

No Equador, quando o preço dos combustíveis aumenta, os indígenas lideram grandes manifestações populares. Quando um projeto petrolífero ameaça a Amazônia, também. Se direitos trabalhistas são atacados ou se o desemprego e a violência estiverem em alta, o governo já pode se preparar.

Não faltam motivos para convocar greves e protestos, e toda essa capacidade de mobilização é puxada pela Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), que aglutina as demandas dessa população. Desde os anos 1990, a Conaie lidera manifestações contra os governos de turno.

A incorporação de pautas além das demandas exclusivamente indígenas é uma das chaves para o sucesso das mobilizações. “A proposta dos povos indígenas ocorre em um contexto de ausência de iniciativas do restante da sociedade civil que lhes permita formular e negociar demandas, gerar críticas e imaginar novas alternativas”, escreve Fernando García Serrano, professor da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, coautor do livro Apus, caciques e presidentes (2016).

O Pachakutik é o maior braço da Conaie na política institucional e surgiu justamente para representar os interesses indígenas. Muitos de seus representantes são ligados às confederações dos povos originários. Para as eleições deste ano, o Pachakutik desistiu de ter um nome próprio na disputa e apoiou a coalizão de Yaku Pérez, que já havia sido candidato do partido indígena em 2021.

Apesar da grande força de mobilização, a abrangência do Pachakutik tem um efeito colateral: correntes internas protagonizam brigas que racham o movimento. Em entrevista com Pérez, em maio, a reportagem questionou sua decisão de deixar o partido e concorrer junto a outras legendas. “Respeito profundamente o movimento, mas o que os congressistas fizeram assim que chegaram ao Congresso foi se dividir: alguns em direção à direita neoliberal do governo Lasso e outros ao populismo autoritário de Rafael Correa”, respondeu.

Ao menos por enquanto, essas diferenças parecem ter sido apaziguadas.

União com movimento campesino

Foto: Flacso/ Divulgação

Protagonismo indígena coincide com a falta de mobilização do restante da sociedade civil, observa Fernando Serrano

Foto: Flacso/ Divulgação

A sinergia com movimentos de trabalhadores rurais e urbanos está na essência de muitas organizações indígenas da região andina. E o melhor exemplo disso está na Bolívia. Desde a Revolução de 1952, organizações indígenas e campesinas ganharam espaço junto às lutas das centrais sindicais.

As cosmovisões indígenas foram colocadas no centro das lutas encampadas pelo chamado movimento katarista, que aliava ideais quéchuas e aimarás.

Nos anos 1970, os kataristas viraram a principal força de oposição, denunciando massacres contra os indígenas – maioria da população boliviana – e combatendo as diferentes formas de exploração neoliberais e colonialistas.

Uma dessas lideranças foi um sindicalista cocaleiro do altiplano. Antes de ser presidente, Evo Morales foi agricultor, padeiro e trompetista. Ao trabalhar nas plantações de coca, usada no país para fins medicinais e religiosos, Morales entrou na luta sindical e construiu sua carreira política.

Uma trajetória parecida com a do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, com uma diferença fundamental: o elemento indígena-campesino está na raiz da agrupação política de Evo, o Movimento ao Socialismo (MAS).

“O MAS é o primeiro governo da história da Bolívia que faz política para os povos originários”, avalia a cientista política Marília Closs, pesquisadora da Plataforma Cipó. “Refundaram o Estado, e isso se deve a Evo – apesar de todas as contradições e problemas”, resume.

Estado plurinacional

Foto: Assembleia Legislativa Plurinacional

O aimará Evo Morales, primeiro presidente indígena da Bolívia: “Os movimentos indígenas continuarão sua luta contra o neocolonialismo interno e externo, que promove racismo, discriminação e humilhação contra os pobres”

Foto: Assembleia Legislativa Plurinacional

Essas refundações se devem a dois processos constituintes quase simultâneos. Em 2008, o Equador proclamou a primeira Constituição Plurinacional do continente, reorganizando o Estado conforme as diferentes nações indígenas e outros povos tradicionais, como quilombolas. No ano seguinte, foi a vez da Bolívia fazer o mesmo, já sob Evo Morales.

“Quando o MAS é eleito, faz um processo que coloca a plurinacionalidade em sua Constituição. Há uma valorização dos idiomas indígenas”, explica Marília Closs. “Isso reverberou muito nos outros países. Dotar a Pachamama (mãe-terra) de direitos constitucionais é o tipo de inventividade política que muda o mundo”, ressalta.

A influência boliviana e equatoriana foi vista no recente processo constituinte chileno, o qual elegeu 17 representantes indígenas e tentou adotar uma nova Carta Magna plurinacional – porém, o projeto foi rejeitado nas urnas no ano passado.

Já o Brasil ainda engatinha na representação política indígena. Nas últimas eleições, pela primeira vez foram eleitas três parlamentares de etnias originárias para o Congresso Nacional: Sonia Guajajara (PSol-SP), Célia Xakriabá (PSol-MG) e Silvia Waiãpi (PL-AP). No entanto, Sonia Guajajara assumiu como nova ministra dos Povos Indígenas, pasta que teve seu papel para a demarcação de terras esvaziado pelo próprio Congresso. Silvia Waiãpi, por outro lado, é representante do bolsonarismo.

Hoje, outros países com grandes populações indígenas já preveem reserva de vagas para comunidades tradicionais – é o caso da Colômbia. No Brasil, com representação rarefeita e acossada, o sonho de uma bancada do cocar ainda está em segundo plano.

Comentários