MOVIMENTO

Movimento dos sem-teto entrega 4 mil refeições por dia em 15 abrigos

Para atender aos desabrigados da enchente em Porto Alegre, a Cozinha Solidária do MTST multiplicou por 10 sua capacidade de produção
Por Ernani Campello / Publicado em 20 de maio de 2024

Movimento dos sem teto entrega 4 mil refeições por dia em 15 abrigos

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Surgidas em meio a pandemia de covid-19, as Cozinhas Solidárias do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) demostraram a força da ação coletiva e comunitária para aplacar um dos maiores dramas deste país: a fome.

Atualmente são 49 em vários Estados, sendo que em Porto Alegre a iniciativa começou em setembro de 2021 e, passados 32 meses, uma nova calamidade pública atingiu a Capital Gaúcha, desafiando militantes do MTST a vitaminar e multiplicar a produção diária para atender a demanda já existente e 15 abrigos e pontos de distribuição para atingidos das cheias do Guaíba, com uma produção de até 4 mil refeições diárias em duas cozinhas.

A Cozinha Solidária de Porto Alegre está instalada no bairro Azenha, onde serviu 150 mil refeições nos primeiros 30 meses de atuação, até abril deste ano, quando atingiu uma média de 350 refeições dia servidas na sua sede, na avenida Azenha 608.

Com a chegada da maior catástrofe natural do Estado e a maior enchente do Guaíba em todos os tempos, dezenas de milhares de porto-alegrenses tiveram que deixar suas casas e irem para abrigos, provocando uma multiplicação nas refeições da Cozinha Solidária, até atingir a incrível soma de mais de 3,5 mil refeições diárias produzidas na Azenha. Trabalham no local mais de 80 militantes e voluntários. Há pessoas que vieram de outros estados para ajudar.

Movimento dos sem teto entrega 4 mil refeições por dia em 15 abrigos

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Com a necessidade de aumentar a demanda para atender desabrigados, uma segunda unidade, chamada de cozinha emergencial, foi aberta no dia 12, nas dependências cedidas da Escola Especial para Surdos Frei Pacífico, no bairro Santo Antônio. Em apenas cinco dias atingiu a produção de 430 refeições diárias.

O movimento e o déficit habitacional

O MTST é um movimento social que nasceu em 1997 com o intuito de garantir o direito constitucional à moradia digna para todos. Segundo dados nacionais de 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há 6,2 milhões de pessoas sem casa para morar no Brasil. No RS, o estudo registrava déficit habitacional de 220 mil moradias antes da calamidade climática que atinge o Estado.

Claudia Ávila é da coordenação nacional do MTST e da coordenação da Cozinha Solidária do RS e explica que “o déficit habitacional e a falta de projetos de moradia popular em Porto Alegre já vem sendo uma grande preocupação do movimento e hoje a gente fala em uma reconstrução da cidade que não seja pensada pela especulação imobiliária e sim pelo povo organizado através dos movimentos”.

Movimento dos sem teto entrega 4 mil refeições por dia em 15 abrigos

Foto: Igor Sperootto

Claudia Ávila, da coordenação nacional do MTST

Foto: Igor Sperootto

“A força de mobilização do movimento vem da necessidade pela moradia e aqui em Porto Alegre hoje falta uma moradia segura para a população”, afirma Gabriel Simeone, membro da coordenação nacional do movimento. “A gente, que acompanha há muito tempo esse projeto de gentrificação de alguns bairros da cidade, vai estar na luta para que toda essa tragédia não seja utilizada para facilitar a transferência de populações inteiras para outras regiões dando acesso a especulação imobiliária nesses territórios”, conclui Claudia.

Claudia Ávila conta que em 2020, em plena pandemia, a ação começou com a distribuição de cestas básicas, que logo mostrou-se insuficiente em virtude da falta de estrutura mínima para as pessoas cozinharem.

“Assim, inspirada nas cozinhas coletivas das ocupações do movimento e nos ‘comedores populares’ da Argentina, iniciamos as cozinhas solidárias ainda em 2020 e em setembro do ano seguinte criamos a cozinha da Azenha com a ocupação de um imóvel da União que já tinha um projeto aprovado para moradia popular, que acabou engavetado pelo Governo e colocado a leilão no início da gestão Bolsonaro. No entanto, em apenas 18 dias de ocupação, foi dada a reintegração de posse e saímos dali para continuar com a cozinha em um imóvel emprestado na rua Marcilio Dias. Sem espaço para atender a comunidade, as marmitas eram servidas, durante sete meses, em plena Praça Princesa Isabel, até desistirmos de conseguir a cedência de um novo imóvel público e alugamos a casa da avenida Azenha 608, onde estamos até hoje”, recorda Claudia.

Movimento dos sem teto entrega 4 mil refeições por dia em 15 abrigos

Foto: Comunicação/MTST

Foto: Comunicação/MTST

Planejamento, estrutura e voluntariado

A calamidade atual multiplicou tudo na cozinha da azenha. Alimentos, doações, voluntários, frequentadores e muitas refeições. A função começa cedo na Azenha.  Em plena madrugada, às 4 horas, o planejamento para as mais de 3,5  mil refeições do dia começa a ser executado. Para qualificar o acolhimento, a cozinha solidária também está oferecendo café da manhã a partir das 8 horas para quem se dirigir até a sede da Azenha 608.

“As necessidades vão surgindo e vamos aumentando o atendimento. Com o apoio de outras entidades, como o projeto social Amada Massa, estamos servindo café da manhã simultaneamente com a produção das refeições, além das entregas das marmitas aqui na porta da Azenha, que eram em torno de 350 em abril e já entregamos 750 em um único dia”, conclui Claudia Ávila.

A produção é levada por voluntários para 15 abrigos em todas as regiões da cidade, como nos bairros Cantagalo e Lami, extremo-sul, Morro da Cruz, zona leste, e Sarandi, zona norte.

Na nova e emergencial cozinha montada na Escola Frei Pacífico, Felipe Martini, o Pepe, comemorava, com cerca de dez companheiros, na chuvosa tarde do dia 16, a marca de 430 refeições produzidas no dia.

“A calamidade e a má gestão da enchente por parte dos governantes, trouxe uma demanda social enorme e pra responder a isso, a cozinha solidária aumentou em dez vezes a sua produção e como o espaço é limitado lá, decidimos abrir outras cozinhas emergenciais e essa aqui na Escola Frei Pacífico é a primeira. Aqui fomos muito bem recebidos e temos uma boa cozinha a nossa disposição, possibilitando atendermos mais abrigos”, explica Pepe.

Nas próximas semanas devem ser abertas, ao menos, mais duas cozinhas solidárias em Porto Alegre e uma na região metropolitana.

Gabriel Simeone, educador popular em tecnologia e coordenador do projeto Contrata.ai do MTST de São Paulo, que promove cursos de informática em escolas públicas através do Núcleo de Tecnologia do movimento, veio a Porto Alegre auxiliar o trabalho dos companheiros da Cozinha Solidária.

Gabriel destaca três pontos que chamou a sua atenção nestes dias na Capital do RS: a capacidade do movimento em multiplicar rapidamente a produção da cozinha da Azenha em dez vezes e de estar em 15 abrigos comunitários levando alimentação e assistência em saúde, além da falta da presença do Estado em diversos abrigos que visitou na Capital gaúcha.

“A gente vê o Estado e a Prefeitura completamente perdidos com a tragédia, como se não fosse algo previsível. Como se a gente não tivesse uma estrutura de contenção de enchentes em Porto Alegre desde os anos 70 e como se eles próprios não falassem  em derrubar o mesmo muro. É muito preocupante que a nossa sociedade não consiga ter uma direção que permita a gente a se precaver coletivamente, pois disposição de se precaver coletivamente é claro que há. O povo gaúcho está se ajudando e merecia não ter passado por isso”, comenta Gabriel Simeone.

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