MOVIMENTO

Parlamentares de oposição se mobilizam contra despejos no Rio Grande do Sul

A exemplo do que determinou o STF na pandemia, deputados gaúchos querem suspensão das reintegrações de posse no pós-enchente
Por Gilson Camargo / Publicado em 27 de agosto de 2024
Parlamentares de oposição se mobilizam contra despejos no Rio Grande do Sul_

Foto: Bruno Peres/Agência Brasil

Liziane Pacheco Dutra, integrante da ocupação ‘O Rio Mais Grande do Sul’: “por que ao invés de promover despejos, não aproveita todos esses prédios que estão ociosos, compra, reforma e dá pra população que perdeu tudo?

Foto: Bruno Peres/Agência Brasil

Em agosto de 2022, dois anos após a pandemia de covid-19 que escancarou, entre outras crises, o déficit habitacional e revelou o tamanho do contingente de pessoas que vivem em moradias precárias no Brasil, o STF confirmou a suspensão dos despejos e desocupações no país. Agora, no período pós-enchente, um movimento semelhante está mobilizando parlamentares e movimentos sociais no Rio Grande do Sul, pela suspensão dos despejos após as enchentes que atingiram o estado e precarizaram ainda mais a moradia para centenas de famílias.

Em seu voto pela prorrogação da Lei 14.216/2021 até outubro de 2022, o ministro do STF, Luís Roberto Barroso, argumentou à época que, quando se esgotasse a atuação do STF sobre a matéria, seria preciso preparar um regime de transição para a retomada progressiva das reintegrações de posse, “com o pleno respeito à dignidade das famílias desapossadas”.

Para o ministro, isso evitaria o risco de convulsão social decorrente da “execução simultânea de milhares de ordens de despejo, envolvendo centenas de milhares de famílias vulneráveis”.

Déficit habitacional e moradia precária

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC) 20222, do IBGE, o déficit habitacional no país é superior a 6,2 bilhões de domicílios, ou 8,3%; e quase 1,7 milhões de domicílios se enquadram como moradias precárias. Já no RS, o déficit habitacional projetado pelo IBGE é de 737,6 milhões de unidades e 193.364 moradias entravam na classificação como “precárias” antes da enchente.

A enchente do mês de maio evidenciou a gravidade do problema de moradia no Rio Grande do Sul, especialmente em Porto Alegre e Região Metropolitana, lembra o deputado estadual Adão Pretto Filho (PT). O parlamentar lembra que milhares de famílias foram desabrigadas depois que suas casas foram destruídas pela força das águas. Com isso, muitas pessoas se viram na necessidade de morar em áreas desocupadas. “No entanto, a falta de sensibilidade e diálogo por parte do governo do RS e prefeituras, bem como de alguns membros do judiciário, fizeram com que essas mesmas pessoas castigadas pela enchente tivessem que ser retiradas das ocupações”, ressalta o parlamentar.

Lei suspende despejos

Parlamentares de oposição se mobilizam contra despejos no Rio Grande do Sul

Foto: Bruno Peres/Agência Brasil

De acordo com o IBGE, existem 223 mil domicílios não ocupados em toda a região metropolitana da capital

Foto: Bruno Peres/Agência Brasil

Pretto é autor de um projeto de lei protocolado na segunda-feira, 26, na Assembleia Legislativa que dispõe sobre a suspensão do cumprimento de medida judicial, extrajudicial ou administrativa de imissão ou de reintegração de posse no RS. O objetivo é “impedir a desocupação, despejo, remoção coletiva em imóvel privado ou público, urbano ou rural, durante o período de calamidade no estado”.

Endossada por deputados das bancadas do PT, PCdoB e PSol, a proposta é resultado de uma audiência pública realizada no mês de julho com lideranças dos movimentos sociais. “É inadmissível que pessoas, diante do sofrimento de não terem onde morar, sejam removidas à força das ocupações”, protesta Pretto.

“Ninguém está em uma ocupação porque quer, mas sim, porque precisa. O direito à moradia, à terra são constitucionais. O que estamos propondo é que pessoas atingidas pela enchente tenham um mínimo de dignidade em um período tão difícil da nossa história”, completa.

No projeto que suspende os despejos, ele ressalta o problema da falta de moradias para a população com base no estudo “Déficit Habitacional e Inadequação de Moradias no Brasil”, realizado pela Fundação João Pinheiro (FJP), em 2021. Naquele ano, a Região Metropolitana de Porto Alegre registrava um déficit de 90.585 unidades habitacionais.

Se o projeto vier a ser aprovado, os despejos e desocupações ficam suspensos no estado enquanto vigerem os atos de reconhecimento e decretação dos estados de calamidade pública, estadual e municipais, até 180 dias após o seu encerramento.

Intimidação

No início do mês, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade foi protocolada pelo deputado junto ao STF, contra um projeto promulgado pela Assembleia Legislativa gaúcha, que prevê sanções a pessoas que participarem de ocupações no estado. “Estamos diante de um projeto preconceituoso, que tem como foco a intimidação de quem luta para ter um teto para morar, um espaço para plantar. O direito à moradia e à terra estão previstos na Constituição Federal”, explica.

Ocupações após a enchente

Parlamentares de oposição se mobilizam contra despejos no Rio Grande do Sul

Foto: Bruno Peres/Agência Brasil

Famílias da ocupação Sarah Domingues, liderada pelo MLB, foram despejadas sob chuva pela PM em junho

Foto: Bruno Peres/Agência Brasil

Depois da enchente, ao menos quatro prédios públicos que estavam abandonados foram ocupados por famílias atingidas pelas chuvas em Porto Alegre. Em junho, cerca de 200 pessoas foram despejadas no mesmo dia da ocupação, sob chuva, em uma operação da Brigada Militar. De acordo com o PnadC do IBGE, existem 223 mil domicílios não ocupados em toda a região metropolitana da capital.

No Centro Histórico, 48 famílias, cerca de 120 pessoas, vivem desde o dia 24 de maio, no prédio do antigo Hotel Arvoredo, na ocupação “Desalojados pela Enchente Rio Mais Grande do Sul”.

A ocupação foi organizada por famílias que não quiseram ir para os abrigos públicos. “Aqui em Porto Alegre tem vários prédios ociosos, sem utilidade social nenhuma. O presidente falou que ou ia construir casas, ou comprar casas em leilão. Então, por que não aproveita todos esses prédios que estão ociosos, compra, reforma e dá pra população que perdeu tudo? Não adianta reformar minha casa. Se eu voltar pra lá, a primeira chuva forte que der, enche tudo”, diz a faxineira Liziane Pacheco Dutra, de 37 anos, que está na ocupação com o marido, a filha e o enteado, além do pai, da mãe e do sogro.

A casa deles, no bairro Rio Branco, foi encoberto pelas águas em maio. Na capital gaúcha, de acordo com o levantamento da FJP, o déficit habitacional antes da enchente era superior a 87 mil habitações.

O movimento Maria da Conceição Tavares, organizado no mesmo dia do falecimento da economista, 8 de junho, pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), beneficiou famílias afetadas pelas chuvas que ocuparam o antigo prédio do INSS, no centro de Porto Alegre. Já as famílias lideradas pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) na ocupação Sarah Domingues, no dia 16 de junho, foram alvo de uma ação de reintegração de posse comandada pela Brigada Militar. Luciano Schafer, da liderança do movimento, afirmou que o governo estadual estava promovendo a reintegração sem decisão judicial e impediu o acesso dos advogados do coletivo. “Foi uma ação ilegal e terrorista do governo de Eduardo Leite para colocar medo na população e impedir que novas ocupações ocorram”, denunciou.

“De 2010 a 2022, quase dobrou o número de domicílios vagos em Porto Alegre. Há uma política de incentivo à construção de novos prédios, mas é para o mercado, voltado principalmente para a população de alta renda. Por outro lado, houve o abandono da política de habitação de interesse social. É uma política que tem que ser mudada, e agora a enchente mostrou isso de forma mais acentuada”, explica André Augustin, pesquisador do Observatório das Metrópoles.

Comentários