Doutor Araguaia retrata vida e morte de João Carlos Haas Sobrinho
Foto: Acervo Pessoal
Com duas sessões de pré-estreias, nos dias 13 e 16 de novembro, em São Leopoldo e Porto Alegre, o documentário Doutor Araguaia – A história do médico João Carlos Haas Sobrinho revela em detalhes a vida e a trajetória política do líder estudantil, médico e militante de esquerda gaúcho João Carlos Haas Sobrinho.
Jovem de classe média, filho de descendentes de imigrantes alemães em São Leopoldo, estudante de medicina da Ufrgs, Sobrinho se destacou no movimento estudantil e passou a ser perseguido pelo serviço de inteligência do III Exército, quando ainda estava na faculdade, em 1964, ano do golpe militar. Na condição de perseguido político, foi viver na região Norte. Sempre perseguido pelo regime militar que o classificara como “subversivo”, foi assassinado aos 31 anos, em 1972, por tropas da ditadura militar, no Pará, onde atuava como médico comunitário.
Resultado de três anos de trabalho, o documentário está em fase de pós-produção e terá lançamento em 2025, em festivais de cinema, nacionais e internacionais, além de cine-debates em eventos relacionados à medicina comunitária e os direitos humanos. A pré-estreia será no Cinesystem, em São Leopoldo (13/11, às 19h30min) e na Casa Diógenes de Oliveira, em Porto Alegre (16/11, às 18h30min) – com entrada franca e debate após as exibições.
Foto: Acervo Pessoal
O filme é uma produção independente da TG Economia Criativa, com direção do documentarista Edson Cabral, roteiro, pesquisas e argumento realizados em parceria com Sônia Haas, irmã do protagonista. Durante as gravações a equipe esteve nos Estados de São Paulo, Maranhão, Pará, Tocantins, Bahia, Rio Grande do Sul e Distrito Federal. O projeto foi viabilizado pelo primeiro edital da Lei Paulo Gustavo, com recursos do estado do Tocantins, e das prefeituras de São Leopoldo e Porto Franco (MA) e com apoio da Fundação Mauricio Grabois (FMG).
Nascido em 24 de junho de 1941, em São Leopoldo, Haas Sobrinho nunca correspondeu ao estereótipo de um guerrilheiro violento que pudesse colocar em risco a “segurança nacional”. Filho de uma tradicional família de classe média de descendentes de imigrantes alemães, com sólida educação jesuíta, foi estudar Medicina na Ufrgs. “O João era uma pessoa alegre, tratava a todos como iguais, gostava de crianças e se comunicava muito bem comigo, era querido e sempre trazia alguma novidade quando chegava em casa”, relata Sônia Haas, irmã de João Carlos e produtora do documentário.
Eleito presidente do Centro Acadêmico da federal em 1963, por sua militância logo virou alvo da ditadura. Foi afastado do cargo logo após o golpe, em abril de 1964, e detido pelo Departamento de Ordem Polícia e Social (Dops). Sua matrícula na Faculdade foi suspensa. Acabou reintegrado por uma mobilização de estudantes e por ser considerado bom aluno, formou-se um ano depois.
Foto: Acervo Pessoal
Suas atividades políticas incomodaram os serviços de espionagem do III Exército, sediado em Porto Alegre, que o ficharam como “subversivo. Por sua condição de perseguido político, foi um dos primeiros guerrilheiros a chegar na região do Araguaia, em 12 de julho de 1967. Instalou-se inicialmente na cidade de Porto Franco, no Maranhão, divisa com o Pará, onde rapidamente se tornou um médico popular.
O doutor João Carlos, como ficou conhecido, com a ajuda de autoridades locais e da população montou um pequeno hospital e não escolhia dia e hora para atender aos pacientes de uma região que nunca vira um médico. “Às vezes percorria longas distâncias para prestar socorro na zona rural ou em outras cidades da vizinhança. Com ele estavam na cidade outros militantes do PCdoB, entre eles Elza Monnerat e Maurício Grabois. Ainda hoje, sua memória é reverenciada na região”, relata Osvaldo Bertolino, do portal Grabois.
Bertolino lembra que, quando Haas Sobrinho deixou a cidade para se integrar à Comissão Militar da Guerrilha, no Pará, houve uma comoção popular. “Um padre local teria mobilizado outros sacerdotes, prefeitos e personalidades da região para tentar fazê-lo mudar de ideia. Uma reunião de emergência decidiu que o povo seria convocado para a praça em frente ao hospital. As informações dão conta de que mais de três mil pessoas estiveram no local. Mas não houve jeito”.
No dia seguinte, ele se embrenhou nas matas do Araguaia, na região de São Geraldo, onde adotou o nome de Juca “e igualmente tornou-se muito popular”. Em 30 de setembro de 1972, foi vítima de uma emboscada da ditadura e morto, na região do Bico do Papagaio, quando chefiava um grupo de guerrilheiros numa movimentação dos destacamentos guerrilheiros. Seus restos mortais nunca foram encontrados.
Em 1995, a Lei 9140 reconheceu que a família tinha direito à certidão de óbito do médico e ativista João Carlos Haas Sobrinho para a lista do livro Brasil Nunca Mais, porém, o documento não trazia qualquer informação sobre a causa da morte do ativista. Somente em 2019, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos obteve uma retificação: “morte não natural, causada por violência do Estado”.
Documentário reivindica verdade, memória e reparação
“Durante décadas, nós, familiares de desaparecidos políticos, dedicamos nossas vidas na busca pela verdade, justiça, reparação e memória. Este documentário resgata, com dignidade, uma história vivida por muitos brasileiros e que as novas gerações precisam conhecer”, ressalta nesta entrevista a irmã do protagonista e produtora do documentário, Sônia Haas:
Foto: Acervo Pessoal
Extra Classe – Após décadas de busca por verdade, justiça, reparação e memória, como foi participar da produção de um documentário sobre a vida do teu irmão, João Carlos Haas Sobrinho?
Sônia Haas – O documentário traz um sentido de resgate da história do João Carlos, ao mesmo tempo que é um material que tornará o assunto bem mais conhecido e permanecerá como acervo para todos os brasileiros que quiserem viajar na trajetória deste ser humano incrível que foi o meu irmão. No momento em que seguimos na luta, ainda buscando a verdade e a justiça, este instrumento contempla o aspecto da memória, que é tão necessária para o nosso país, de forma acessível e transparente.
EC – Quais dificuldades enfrentou?
Sônia – A grande dificuldade sempre foi encontrar pessoas que tivessem coragem de revisitar os caminhos percorridos pelo João e então documentá-los para uma produção audiovisual. E esta intenção brotou do amigo Edson Cabral ao mergulhar com mais profundidade no tema. Ele, como conhecedor do Tocantins e morador de Palmas, conseguiu traçar um plano de ação que desembocasse nesta produção. Construímos roteiro e argumento juntos, com o apoio de Odilon Camargo, meu companheiro. E neste ímpeto, ele foi dirigindo e produzindo o nosso Doutor Araguaia. O nome veio da HQ lançada pela Alameda Editorial, de Diego Moreira, leopoldense. Solicitamos a ele que seguíssemos com este nome de batismo, dado por ele a JCHS. Foi aceito na hora. E eu quis muito, porque acredito que é um título que faz jus à amplitude de trabalho e dedicação que meu irmão teve na região, antes de ser morto pela ditadura militar.
EC – Quais memórias tu conservas sobre teu irmão, como era a convivência de vocês em São Leopoldo?
Sônia – Minhas memórias são muito boas. O João era uma pessoa alegre, tratava a todos como iguais, gostava de crianças e se comunicava muito bem comigo, era querido e sempre trazia alguma novidade quando chegava em casa. Era um irmão querido por todos, uma criança agregadora e sempre demonstrou liderança. Ele é o segundo dos sete filhos, eu sou a sétima. Família grande, mas muito unida.
Foto: PMSL/ Divulgação
EC – Por que um jovem de classe média, estudante de medicina em uma federal foi virar alvo da repressão?
Sônia – João entrou com 17 anos na Faculdade, com 22 era presidente do Centro Acadêmico Sarmento Leite, da Medicina da Ufrgs, e nos primeiros dias do golpe foi preso, assim como várias outras lideranças estudantis, inocentemente. Eram atitudes aterrorizantes dos militares, amedrontando estudantes e suas famílias e o contexto universitário, batia o pavor em todos. Imagino que ele foi alvo para vir a ser um símbolo de que quem pensasse, debatesse, refletisse, e tivesse qualquer liderança, era inimigo, não era bem quisto na sociedade. Uma atrocidade muito grande. Foram assim, esfarelando núcleos políticos e gerando a prática da tortura e de mortes inconsequentemente.
EC – Quais atividades políticas do João Carlos levaram o serviço de informação do III Exército a considera-lo “subversivo”?
Sônia – Eu não sei, objetivamente, creio que era a liderança que incomodava, era o questionar, o pensar, o olhar pro mundo e ver mais longe do que o horizonte do Brasil. Depois que foi solto e se formou, em dezembro de 1964, ele passou a ser sempre perseguido, o que o levou a sair do estado. Naquele momento, eu acredito que se ancorou no PcdoB, e seguiu o seu rumo. Nós, da família, de nada sabíamos.
EC – Como João Carlos é retratado no filme?
Sônia – Ele aparece por meio de depoimentos de familiares, amigos, pacientes, colegas de turma… e cada um vai criar o seu JCHS, mas com uma visão única de amor ao próximo e coragem de lutar. Por meio de meus relatos, se traça um alinhavo com fotos antigas, documentos e pesquisa que mostram o percurso, as escolhas e as marcas deixadas.
EC – Quando e em que condições ele deixou o RS?
Sônia – Saiu de casa em janeiro de 1966, dizendo que ia fazer um curso em São Paulo. Levou uma mala grande e disse que mandaria o endereço, que nunca mandou. Algumas cartinhas vieram até julho de 1969. Sem endereço. Do que se deduz que desde sua saída já estava comprometido com o partido e sabia de sua direção na missão proposta. Tentou nos deixar longe de tudo, pois não quis nos expor aos riscos, entendi muitos anos depois. Em 1979 soubemos de sua morte, ocorrida em setembro de 1972. Tudo vira de cabeça pra baixo e nossa família inicia um novo ciclo, de buscas, angústia e tristeza.
Arte: Divulgação Arte: Divulgação
EC – O que o documentário revela sobre a atuação do médico e militante de esquerda no Araguaia? Parece que ele logo se tornou um líder capaz de mobilizar a população…
Sônia – Sim. Exatamente. É impressionante a presença forte que ele tem na região até hoje. Está vivo lá, nos abraços que recebo, nas histórias que escuto e no DNA das cidades por onde passou. Deixou marcas indeléveis, que o documentário vai mostrar a todo o Brasil. Tenho orgulho de ser sua irmã, mesmo que sofra a dor da perda e da ausência. O diretor Edson Cabral conduziu muito bem o filme para haver esta clareza e mostrar o verdadeiro sentido da luta de um guerrilheiro.