Grandes agroquímicas criam insegurança jurídica para a agricultura nacional
Foto: Cleverson Beje/ Brasil de Fato
Plantas e suas partes estão sendo patenteadas e tratadas como invenções técnicas pela indústria sementeira no Brasil, a exemplo do que ocorre em outras partes do mundo.
Em nome de agricultores nacionais, os advogados Néri Perin e Charlene de Ávila denunciam que multinacionais do setor agroquímico têm buscado o registro legal para características específicas de plantas.
O grande problema, destacam, é que ao criar formas para a resistência a doenças ou para adaptações climáticas via uso da engenharia genética para replicar características de plantas convencionais, as grandes corporações acabam impondo insegurança jurídica a um setor responsável por colocar comida na mesa dos brasileiros e gerar divisas nacionais através de exportações.
Acontece que esse tipo de patente não se limita a plantas obtidas por processos técnicos. Abrangem também mutações naturais e variantes genéticas selecionadas para o cultivo, registram os advogados que se preparam para lançar no início de 2025 o livro Propriedade Intelectual – O direito dos Agricultores às sementes próprias.
Charlene e Perin são categóricos: não se trata de invenções técnicas, mas de privatização de plantas e suas partes que contrariam a legislação brasileira de propriedade intelectual. Segundo a lei nacional, uma planta ou suas características não são consideradas invenções técnicas e isso, segundo eles, cria um impedimento legal nos objetivos da indústria sementeira.
Consequências
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“Agora, por que isso importa? Porque essas patentes trazem consequências indesejadas. A primeira delas é a perda da diversidade genética: um estudo da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) mostra que 75% da diversidade genética já foi perdida. Outra consequência é a liberdade dos agricultores, que fica comprometida, impedindo a troca e o melhoramento de plantas. Sem falar em questões de concorrência, ética e valores que estão sendo atropelados”, discorre Charlene.
Néri Perin, que em 2002 empreendeu uma batalha judicial contra uma das maiores corporações de sementes transgênicas – leia retranca à parte nesta matéria – lembra que essa privatização das sementes obriga o agricultor a comprá-las todo ano e chega a proibir a troca entre famílias ou amigos.
“É uma prática que vem desde a Revolução Verde e que muitos cientistas criticam. Essa ideia de que sementes comerciais com estabilidade e homogeneidade são melhores do que as produzidas e salvas nas propriedades é perigosa e coloca em risco a segurança alimentar. Na prática, o desenvolvimento eficaz das plantas e alimentos acontece na fazenda, com a troca e o melhoramento feitos pelos próprios agricultores”, declara.
A Revolução Verde foi um conjunto de mudanças tecnológicas e práticas agrícolas implementadas a partir da década de 1940. O objetivo, aumentar a produtividade agrícola e combater a fome em escala global. O termo foi popularizado na década de 1960, com os avanços promovidos pelo agrônomo norte-americano Norman Borlaug, conhecido como “pai da Revolução Verde”.
Concentração de poder
Foto: Gilson Camargo/ Arquivo Extra Classe
Os advogados também denunciam a concentração de poder no mercado global de sementes e agroquímicos, que é dominado por empresas como Bayer, Corteva, Syngenta e Basf.
Essas corporações são responsáveis pelo controle de quase metade do mercado de sementes e 75% do de agroquímicos.
Esse monopólio, viabilizado pelo regime da União Internacional para a Proteção de Novas Variedades de Plantas (Upov), beneficia grandes corporações ao permitir preços elevados e maior pressão sobre agricultores que perdem autonomia sobre suas práticas e recursos.
Ao transformar sementes, genes e microrganismos em propriedade privada, a indústria agroquímica fomenta leis que criminalizam práticas tradicionais como a troca ou o uso de sementes próprias e violam princípios de justiça e liberdade, como a presunção de inocência, destacam Charlene e Perin.
Além disso, permite buscas e apreensões sem mandado. Isso deixa os agricultores vulneráveis a vigilância e acusações. Muitas dessas legislações, continuam os advogados, são aprovadas de forma sigilosa, sem debate público e escritas de maneira vaga, dificultando sua interpretação.
Perin lembra de um caso bastante conhecido nos Estados Unidos e que pode também ser replicado no Brasil, com o avanço dos interesses das corporações agroquímicas.
Em 2016, o caso da Michael Seeds Company destacou problemas de contrabando e fraude com sementes não autorizadas. Segundo Perin, a legislação brasileira já prevê punições para produção e fraude de sementes não autorizadas (artigo 190 da Lei de Propriedade Intelectual). Por isso, entende ele, o patenteamento de sementes, direto ou indireto, é inadequado. Para o advogado, é essencial garantir o direito dos agricultores de produzirem suas próprias sementes.
Em 2019, a reportagem do Extra Classe, Sementes crioulas mobilizam produtores do Vale do Taquari, recebeu o primeiro lugar na categoria Webjornalismo da 6ª edição do Prêmio José Lutzenberger de Jornalismo Ambiental.
O trabalho registrava “Os Guardiões das Sementes” que produzem suas matrizes longe de outras culturas, em especial as híbridas e as transgênicas para não ter cruzamento, separando por área verde, longe de outras culturas de milho.
O advogado que enfrentou a Monsanto
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Semente é vida e é soberania, sentencia o advogado Néri Perin, que em 2002 iniciou uma batalha judicial contra a maior multinacional de agricultura e biotecnologia do planeta, a Monsanto, braço do grupo Bayer, que por sua vez é líder mundial na produção de um dos mais mortais agrotóxicos do mundo, o herbicida glifosato.
“Desde quando começou a cobrança de propriedade intelectual em semente própria, na safra de 2002 em diante, nós já estamos questionando na Justiça a empresa Monsanto sobre a ilegalidade da aplicação de lei de propriedade intelectual”, diz o advogado Néri Perin. Isso porque o Brasil possui uma lei própria especial sobre cultivares, que é a lei 9.456 de 97, tratando especialmente desse assunto e permitindo, no artigo 10, que o agricultor faça e produza sua semente própria, esclarece.
Perin ressalta a importância desse detalhe, lembrando que no ano passado, por exemplo, o Mato Grosso replantou quase 1,5 milhão de hectares. “E a gente sabe que não existe na indústria de semente estoques e estoque prejuízo. Então, não se tem semente sobrando para vender e eventualmente replantar. Então é importante que o agricultor tenha na sua propriedade a sua semente para plantar ou para replantar, se for o caso. Está disponível, está na hora, não precisa correr atrás e tem uma coisa muito boa com efetividade, com o que ele conhece, uma semente que ele mesmo produziu”, conceitua.
Os agricultores produzem excelentes sementes, sublinha Perin, para explicar que “semente é vida, produção e segurança alimentar, autonomia e soberania de um país”. O advogado destaca que a produção autônoma de sementes é o caminho para que o Brasil continue sendo um grande produtor mundial de alimentos.
“Precisa assegurar as coisas mais simples para isso e a mais importante delas é, o primeiro passo de qualquer atividade de agricultura, é a semente. Eu tenho que plantar uma semente boa, de qualidade, conhecida, que produz bem. E o agricultor sabe fazer isso, porque ele observa, ele é um cientista, ele vê na lavoura plantas diferentes, que produzem mais, ele seleciona com mais carinho e com custo muito, muito menor que a semente industrial”.
Perin ressalva que não é contra a produção de semente em escala industrial. “Absolutamente não somos contra isso. Mas nós somos a favor, sim, de que o agricultor possa produzir sua própria semente. Nós temos uma lei específica que trata e possibilita essa produção de semente”, conclui.