A situação ideológica do final do século 20 em nada se compara com a do início. Os debates clássicos sobre os “rumos” para se construir o “reino da liberdade”, envolvendo Bernstein e Kautsky, Kautsky e Lenin, Stalin e Trotsky, cederam lugar na atualidade à incerteza com relação aos postulados de base das utopias transformadoras. Contribuiu para isso a derrota do “projeto de sociedade”, que culminou na queda do Muro de Berlim em novembro de 1989. Trinta anos antes, porém, não raros intelectuais já denunciavam o esgotamento teórico do totalitarismo soviético. Para completar, o esforço de renovação do comunismo oficial na Europa, através do “eurocomunismo”, não conseguiu se impor como uma alternativa política ao antigo “modelo” com sede em Moscou. Quanto ao contra-americanismo chinês e cubano, após a “revolução cultural” de Mao Tse-Tung e a morte de Ernesto Che Guevara, se influenciou o imaginário armado de rebeldes do Terceiro Mundo durante certo período, é forçoso reconhecer que tampouco logrou preencher o vazio deixado nos círculos de esquerda em face do esboroamento da experiência stalinista. Ninguém imaginou que a história pudesse ir por esses caminhos, mas foi.
Até a bandeira do internacionalismo, tão cara aos críticos do sistema capitalista, trocou de mãos, condenando os porta-estandartes de antanho à profunda “melancolia”. Sem mencionar os que passaram a mesclar um anarquismo libertário e um programa ultraliberal, por “incapacidade de elaboração do luto”, nas palavras de Ernildo Stein. Não espanta, em conseqüência, que pensadores moderados tipo Norberto Bobbio e Alain Touraine freqüentem a mesa de cabeceira de quem, hoje, desconfia das metáforas sobre o “assalto aos céus”. Chamam isso de “bom senso”. Antônio Gramsci diria que não passa de “senso comum”, e suspeito que acertaria.
O resultado é que a social-democracia se afigura para inúmeros ex-revolucionários o locus dos arrependimentos pelas crenças e ações cometidas em nome de sonhos radicais. No Brasil, independente de qualquer juízo de valor, o fenômeno se estende aos labirintos do PT, onde importantes lideranças apresentam-se agora como “social-democratas”, em vez de “socialistas”. Mas não só para esses a herdeira da Segunda Internacional surge como uma esperança. Há também egressos de partidos tradicionais das classes dirigentes (PMDB e PPB, no caso) que postulam a filiação doutrinária em voga (PSDB, claro). Com o que são eliminadas as distâncias que separavam as posições conservadoras das progressistas. É o que dá a impressão de vivermos sob o despotismo de um pensamento único, na virada do milênio. Compreende-se então que a classificação de “esquerda” e “direita” receba questionamentos por parte de alguns analistas da realidade, apesar do próprio Bobbio insistir na legitimidade do binômio vinculando o primeiro termo sobretudo à esfera da igualdade e, o segundo, à da liberdade (especialmente a do mercado). Quando Nelson Marchezan e Francisco Weffort prestam serviço ao mesmo governo, fica difícil acreditar ainda que a esquerda e a direita defendem valores ideológicos distintos.
Dito diferente, a reinvenção do centro do espectro político acontece em contradição com os princípios que pregava nas origens, quando estimulava a sociabilidade a partir do Estado. Pobres de seus herdeiros tucanos, que também não escaparam da fagocitose globalizante no momento que ruíram os paradigmas, e agora atacam os serviços públicos. O centro se direitizou. Seria temerário, no entanto, interpretar a “erosão das ideologias” com ênfase apenas nos fatores ligados ao visível desprestígio dos apelos aos movimentos anticapitalistas. Haveria que acrescentar a combinação da crise cultural dos anos 60 com a crise econômica das décadas 70 e 80 no Ocidente, as quais fizeram do individualismo possessivo e do laissez-faire do capital financeiro o horizonte de nosso tempo. E do darwinismo social, uma norma governamental reforçada pelo “adeus ao proletariado” e pelo “fim da história”. Compra quem quer, naturalmente.
Já, se os ideais utópicos renascerão das cinzas, nem os atuais vencedores ousam duvidar diante do abismo entre os hemisférios Norte e Sul e da ameaça aos regimes que se auto-intitulam democráticos, dada a crescente propagação de “discursos paradoxais”, que vão da xenofobia ao tecnocratismo. Ambos incompatíveis com o pluralismo e a tolerância, ensina Pascal Ory, no livro Nouvelle Histoire des Idées Politiques (Hachette, 1987). Nada que indique uma paz perpétua para a “moderna” social-democracia ou para a pós-nova ordem mundial, lá ou aqui. O neoliberalismo, em suma, que socialmente faz terra arrasada dos preceitos civilizatórios, trouxe de volta à agenda política, a luta de classes e a utopia. Lula e Brizola, de um lado. FHC e Britto, de outro.
* J. Luiz Marques é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da UFRGS Porto Alegre/RS