Faz tempo que o fato está ali, seco como um soco. Está nas esquinas, na calçada, na sinaleira. Está nos supermercados, nas oficinas, na feira. A gente sabe. Mas não dá a mínima. É o Brasil, costuma-se dizer com displicência. É um soco que não fere porque não é no rosto do meu filho.
Problema da autoridade. E a autoridade foi eleita para resolver problemas. Sou apenas uma pessoa. Já faço muito em cuidar dos meus próprios filhos.
Trocando em miúdos, é assim que muita gente raciocina. Se não fosse assim, o fato não estaria aí, banal. Dura. Mas verdadeira esta forma de encarar a exploração do trabalho infantil e o rotineiro atentado contra o direito da criança no Brasil.
O escândalo de figuras do governo e da sociedade com as recentes denúncias da imprensa em torno do trabalho infantil, mais uma vez revela o grau de cinismo com que habitualmente se trata, no país, as misérias do nosso cotidiano.
Parece até que ninguém sabia que crianças de menos de dez anos cortam cana no interior de São Paulo, engraxam sapatos, carregam caixas nos centros de abastecimento.
Até parece novidade que meninas de 12, 13, 14 anos se prostituem nas estradas do Nordeste, nos inferninhos, nas calçadas da nossa cidade.
Tudo parecia normal. Até que alguém decidiu dizer que não. Só que o escândalo em relação aos fatos em si mesmos está encobrindo uma outra sucessão de escândalos que não escandalizam.
Faz tempo que a infância vem sendo assassinada no Brasil. Às vezes, literalmente, como sucedeu na Candelária.
Ora, um governo que gasta fortunas em projetos duvidosos, que prefere salvar bancos falidos ao invés de fomentar a economia produtiva, geradora de empregos, não tem o direito nem de fazer cara feia diante de fatos corriqueiros.
Pior, uma sociedade que apóia governos deste tipo é cúmplice efetivo dos crimes contra a infância.
O quadro objetivo tem poucas pinceladas. Somos campeões de concentração de renda. O Estado brasileiro, que já foi mais generoso com a cidadania, está em liquidação. Vende-se tudo. Não só as estatais. As próprias funções do Estado estão no pregão. O leiloeiro pergunta quem dá mais e fecha o negocio. Quem ganha não se sabe.
É lógico e deveria ser perfeitamente admissível – aliás como é de fato – que as famílias pobres e aquelas que nem chegam a ser pobres mandem os filhos pequenos buscar algum dinheiro.
Mas, afinal, a coisa é simples.
Se a situação da infância no Brasil é mesmo revoltante e inaceitável para governo e sociedade, que ambos tomem as providências necessárias e de acordo com as suas funções. Que o Estado prenda quem comete crime contra as crianças, que promova a economia produtiva e empregue os adultos. Que o Estado contrate professores e deixe de substituir a educação pela parafernália eletrônica. Que o Estado crie postos de saúde. Que a sociedade deixe de ser cínica e indiferente, que cobre dos governos eleitos as promessas de campanha.
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A propósito, o nosso presidente, porta-voz da modernidade, deveria dar um basta nesta situação que remonta à emergência do capitalismo no mundo. Ele tem autoridade para isso e sabe que a instituição da infância na sociedade moderna corresponde exatamente à necessidade de controle social e político sobre o trabalho da criança. Antes da revolução industrial, simplesmente não existia a idéia de infância. Até então, a criança era apenas um adulto pequeno. Foi o próprio capitalismo que produziu o conceito e, claro, não deixou por menos, hoje a criança e a juventude representam um volumoso e disputado segmento de mercado. Afinal, a produção não pode contar com a mão-de-obra da criança, mas a criança tem de dar a sua parte para movimentar o sistema. Os pioneiros industriais ingleses, com a assessoria de Smidt e Ricardo, devem ter raciocinado mais ou menos assim: bom, se estes pequenos não podem trabalhar, podem pelo menos comprar.
Como no Brasil nem os muitos adultos têm emprego e nem podem comprar, também a infância não é acessível. É privilégio, tem classe social. Uns podem tê-la, gozá-la. Outros não. Coisas tão simples se transformaram em privilégio neste país.