Em artigo publicado recentemente na Folha de São Paulo, o Prof. Ivan Izquierdo – aqui da UFRGS – comentou a perda de poder da palavra neste final de século – já estamos no outro, segundo ele. De fato, como lembra o poeta José Paulo Paes, os jovens, por exemplo, (nós também?) já não conseguem terminar uma frase.
Se “as redes de pescar palavras” – expressão do mexicano (e poeta, outro) Octavio Paz – só estão com lambaris e botas velhas é preciso lembrar: a canoa já virou e não chegamos lá (olê, olê, olá?). Antes, nos enredamos entre as janelas da rede e é de lá que espiamos a praia toda passar: a mensagem publicitária de cores, imagens e mentiras, o cavalo do dente no riso neoliberal fernando-henriquista, biquínis de últimas bundas, amigos que duram a exata medida da lata de cerveja (Bukovski?), milho, pagode, Paulo Coelho, a merda… silenciosamente seguindo seu rumo.
Mas se tiramos poesia de pedra, de faca (João Cabral?), não a tiraremos do nu, isto é, do silêncio?
Dia desses foram vender panelas em um recreio de uma das escolas onde trabalho. Há poesia nisso: vender panelas, mas na hora eu estava mais preocupado em descansar (show do intervalo, melhores momentos) e as panelas com seus vendedores me tiravam poesia e lugar.
“Quem autorizou vendedor de panelas?” “É que eles são professores nas horas de bico…”, respondi a um colega mais inquieto.
Um dos vendedores ouviu tudo e me lançou o olhar mais silencioso que lembro ter visto. Não moveu palha, palavra ou panela.
Hora da aula, subi. Um aluno – diante de minha “mudez” – questionou-me:
“Sor, como achar um sujeito na frase ‘A concha confessou a sua solidão’? Concha fala?”
“Não, mas as panelas.” “???” “…”
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Somos também o país da sabedoria aparente, isto é, o das pessoas que em virtude de um individualismo (histórico, se considerarmos a formação do Brasil colônia) diluído em aparente sociabilidade tentam parecer mais cultas e inteligentes do que de fato são. Ora, daí para o privilégio das profissões de caráter liberal não é um pulo, não é um passo: é um ir se deixando levar para esses afazeres profissionais de um status a que nunca se aliou a categoria dos professores, antigos preceptores.
O preceptor, responsável pela educação dos filhos de classes abastadas, era (era?) uma espécie de baby-sister intelectual, papelzinho irrelevante, dado o desinteresse com que era tratado o tema educação aqui nos trópicos e subtrópicos.
Logo, não é difícil imaginar que um vendedor de utensílios domésticos (panelas, por exemplo) gozava de maior prestígio até mesmo junto às mocinhas casadoiras do século passado. A aura galante de aventureiro rendia ao vendedor (normalmente caixeiro-viajante) possibilidades de ascensão social bem maiores que as dos professores.
Quer dizer, nunca existiram a desautorização e o desprestígio do magistério: existiu sim oscilação das variáveis de condescendência em relação à categoria. No que diz respeito ao exercício docente, portanto, a ótica vigente é absurdamente lógica, mas lógica.
Digo isso porque ao longo dos anos que venho dando aula percebo como o trabalho do professor é tantas vezes encarado como extensão dos trabalhos domésticos; afinal, qual é a diferença entre servir à mesa ou à classe? Melhor para quem serve à mesa, pois o alimento físico é nitidamente mais urgente que o alimento, digamos, intelectual.
Entre o frigir dos ovos e o seu consumo, melhor mesmo trocar lâmpadas, trabalho visto sem o cinismo que costuma acompanhar o árduo trabalho professoral de dar luzes de lanterna ao olho imenso da escuridão.
* Marlon de Almeida é professor, poeta, mestre em Literatura Brasileira, leciona na Escola Santa Rosa de Lima e no Colégio Israelita Brasileiro, em Porto Alegre.