OPINIÃO

De como o discurso vai longe da prática ou mentir é preciso no sistema liberal

André Luiz R. Soares* / Publicado em 2 de junho de 1998

A História do Brasil é a História das arbitrariedades. O neoliberalismo, através de seu jogo pelo poder, dita as regras econômicas e, por que não, sociais. Falar em neoliberalismo é redundância, pois como diz Chomsky, “o neoliberalismo sempre existiu”.

Em reunião no dia 28 de fevereiro do corrente, foi solicitado aos professores de História do nível médio da Escola Província de São Pedro, sito a rua Mal. Andréa, nº 345, Porto Alegre, bairro Boa Vista, sugestões de livros didáticos. No início das aulas, começadas em 4 de março, os professores sugeriram um livro para o 1º e 2º anos do nível médio e um outro para o terceiro ano, face a preparação para o vestibular. Sugestões dadas, os livros passaram a integrar a lista recomendada para uso neste ano.

Qual não foi a surpresa ao ser comunicado, dia 30 de março, que o livro fora rejeitado pelo ‘conselho pedagógico’ da Escola. Fato estranho: primeiro, não houve uma reunião entre os professores e o ‘conselho’; segundo, os livros já haviam sido distribuídos aos alunos até aquela data. Na manhã do dia 30 de março, os livros foram, literalmente, recolhidos, como se fossem de cunho perverso ou prejudicial. A justificativa foi que o livro continha ‘idéias’ incompatíveis com os pressupostos da Escola, inadequados.

Nos parece que tal “inquisição” não se justifica, tanto pela qualidade do livro (Nova História Crítica, Mário Schmidt, Nova Geração), como pelos requisitos que atende de acordo com o método da Escola, um híbrido não assumido do método Montessori. O livro, segundo os alunos, é interessante e instigador, reflexivo e crítico.

Cabe perguntar: a qual ‘conselho pedagógico’ este livro não atende? Se não atendia desde o começo, por que foi aceito e incluído na lista dos alunos? Por que foi recolhido, tal qual censura pelo conteúdo pernicioso?

Sem buscarmos uma resposta subjetiva, retomamos a pauta do início. Se o discurso prega que o mundo é dos mais aptos, na prática afirma que deve haver um grande número de incapazes. Se em tese ele estimula a crítica, esta se dirige ao vizinho e jamais a autocrítica. Em suma, o ensino de História como crítica é perigoso porque faz pensar. As contradições do capitalismo não valem a pena ser enumeradas. Isto não é problema.

O problema está em “abrir as cabeças” dos alunos para colocar-lhes um conteúdo perigoso, por que crítico. O problema é questionar a miséria, a opressão, a censura, a competitividade, na qual, entre os alunos, alguém terá de sobrar, pois este é o espírito do neoliberalismo. O problema é nadar contra a correnteza ao mostrar as falácias do individualismo, do consumismo crônico, da superficialidade; é mostrar que a mídia está acima dos três poderes, que os conflitos sociais existem por que não há vontade política para resolvê-los (ainda mais que colocaria em xeque sua própria condição de privilegiados). Enfim, o problema está em se fazer críticas às desumanidades que se perpetuam para que uns poucos possam desfrutar da babel que é o nosso país.

Não se pôde questionar, junto ao ‘conselho’, a utilidade da obra na formação de consciência crítica, na utilização do conhecimento histórico como cultura, na formação de opinião própria ou – de forma imediata – no uso do conteúdo para o vestibular.

Se o discurso prega um método montessoriano (ou uma aproximação deste) é compreensível porque se destrói um espaço de crítica? Não há uma contradição entre discurso e prática ? Se não, porque recolher livros?

O “problema” está em problematizar, tornar o ensino de História prático e relevante, um ensino sem cheiro de mofo ou estéril de utilidade. A história é “estudar o passado”, “conhecer os fatos importantes” e daí por diante, claro, conceito positivista do ensino e da utilidade da disciplina.

O domínio ideológico, a formação de rebanhos acríticos e despolitizados insere-se em um quadro mais amplo de futuros cidadãos que são, parafraseando Brecht, “analfabetos políticos”, aqueles que odeiam política e desconhecem que é por sua culpa que existe a miséria, a pobreza, a criminalidade, a injustiça, a revolta. A ausência de postura também é ideologia, também é uma posição.

“Ah, mas é só um livro didático!”. Com certeza que, passados 25 anos de ditadura, ainda haja fantasmas a exorcizar. A perda da inocência começa quando percebemos onde querem nos conduzir, nos fazer calar. Ironia do destino é que o livro é utilizado por escolas que, antigos centros de reprodução positivista, hoje adotam o pensamento crítico, enquanto que o Província utiliza livros “inocentes” que reproduzem falácias de história do Brasil e abrem os caminhos da perpétua ignorância na frase mais conhecida dos alunos: “Odeio História por que é um saco!”

* André Luiz R. Soares é professor, mestre em História pela PUC-RS. Porto Alegre

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