OPINIÃO

Proposta indecente: o fim da anualidade tributária

RAFAEL DE ARAÚJO GOMES / Publicado em 29 de novembro de 1998

Peço licença aos leitores para iniciar este artigo com a exposição de um conceito, pois a matéria o exige. O princípio da anualidade tributária é um dos mecanismos jurídicos que limitam o poder de tributar, do qual é titular o Estado. Está previsto no art. 150, inciso III, “b”, da Constituição Federal, que veda a cobrança de tributos (impostos, taxas, etc.) no mesmo exercício financeiro (ou seja, no mesmo ano) em que tenha sido publicada a lei que os criou ou aumentou. A inspiração é impedir que o

contribuinte seja pego desprevenido, permitindo que se prepare para a incidência do novo tributo.

Pois bem, há algumas semanas atrás, os brasileiros foram surpreendidos pela apresentação de uma nova proposta governista de reforma tributária, a ser “enxertada” no projeto que já tramita no Congresso Nacional. Dentre outras coisas, ela pretende eliminar, ao menos temporariamente, o princípio da anualidade. A divulgação dada pela mídia a esse ponto da proposta foi mínima. Seria esta uma medida eminentemente técnica, tornada indispensável por força das conjunturas internacionais? Creio que não.

A bem da verdade, é preciso esclarecer que já existem diversas exceções à anualidade tributária, como por exemplo os impostos sobre a importação e exportação. Tratam-se, entretanto, de tributos que cumprem função eminentemente extrafiscal, ou seja, são instrumentos de política econômica, não tendo por finalidade principal a arrecadação de recursos financeiros. A proposta atual inova porque tem como meta permitir ao Governo fazer caixa, viabilizando o pagamento de juros a credores internacionais.

Sem meios termos, a proposta é uma autêntica excrescência jurídica. Se fossemos resumir o que de mais fundamental existe na Constituição, chegaríamos aos direitos básicos da pessoa humana (vida, integridade física, etc.), à legalidade e à anualidade tributárias e ao direito de voto. Foi para adquirir garantias como essas que se fez, por exemplo, a Revolução Francesa.

A possibilidade de vir o Estado a criar ou majorar tributos a qualquer momento faria reinar a insegurança tanto jurídica quanto econômica, impossibilitando a formação de projeções quanto ao futuro. Como iniciar algum empreendimento sabendo-se que, repentinamente, seu custo pode ser até duplicado? E isso vale tanto para os cidadãos quanto para as empresas. A perda de referenciais prejudicaria o setor produtivo e a sociedade como um todo, tornada refém da arbitrariedade da equipe econômica.

Considerando que a legalidade tributária também está prestes a ir para o espaço, poderia o Governo Federal aumentar qualquer imposto de um dia para o outro por meio de Medida Provisória, que tem força de lei mas não legitimidade democrática. Possuindo o Governo maioria no Congresso e também, por que não reconhecê-lo, no Supremo Tribunal Federal, tal Medida Provisória poderia ser, como tantas outras, eternamente reeditada.

O simples fato de ter sido essa proposta cogitada nos diz muito a respeito do estado de espírito em que se encontram os integrantes desse Governo. Eles já dilapidaram quase todo o patrimônio público, e agora precisam, com urgência, de ainda mais, pois sabem que se apenas um centavo de juros da dívida não for pago em dia, a farsa que tão meticulosamente armaram se desfaz.

Se são capazes disso, se podem conceber semelhante absurdo, rompendo com todos ospadrões éticos e com a própria razão, é porque são capazes de qualquer coisa. Estamos diante de um governo firmemente disposto a imolar todos nós, começando pelos mais pobres, para agradar ao mercado.

Percebe-se, enfim, que ao achatar o povo com novos e maiores tributos, provocando recessão e desemprego, o Governo Federal pretende apenas ganhar tempo, administrando enquanto for possível a crise que ele próprio criou. A verdade, nua e crua, é que, do ponto de vista de seus integrantes, a começar por Fernando Henrique, não há nenhum problema real a ser resolvido. O Governo está fazendo exatamente aquilo a que se propôs desde o início: transferir a maior quantidade possível de riquezas para as mãos de um grupo extremamente reduzido de pessoas. Seu compromisso não está mais, sequer, com a elite empresarial do país, mas sim com uma elite internacional, globalizada e insaciável.

* Rafael de Araújo Gomes é advogado. Porto Alegre

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