OPINIÃO

O Mercador de Veneza e o lucro dos bancos

Eduardo Capellari / Publicado em 24 de setembro de 1999

Um dos momentos mais belos da literatura clássica ocidental encontra-se na comédia O Mercador de Veneza de William Shakespeare, escrita em 1574, onde, além dos amores de Bassânio e Pórcia, Graciano e Nerissa, Lourenço e Jessica, encontra-se o conflito entre o banqueiro Shylock e o mercador Antônio em relação à um empréstimo cuja letra vencida estipulava como multa uma libra de carne junto ao coração do mercador.

O núcleo central da comédia, que desenvolve-se perante o Tribunal de Veneza, expressa a profunda discordância entre a visão de mundo do mercador, entre cujas virtudes encontra-se a de emprestar dinheiro sem cobrar juros, e a do banqueiro que aumenta sua riqueza com a prática da usura.

Shakespeare provavelmente não trataria desse tema em uma comédia se estivesse a produzir sua obra em fins do século XX, e muito menos ainda se acompanhasse os crepúsculos do milênio no Brasil.

O Brasil, esse gigante latino-americano que tem sido capaz de provar que as fronteiras do impossível estão muito aquém da nossa vã imaginação, produziu no primeiro semestre de 1999 mais uma aberração graças ao “talento” de nosso governo federal: com a desvalorização cambial e a elevação dos juros o lucro acumulado dos 15 bancos que divulgaram os balanços deste período passou de R$ 94,45 milhões (1º semestre de 1998) para R$ 2,56 bilhões (lº semestre de
1999), com uma evolução de 1217%.

Somente o Itaú lucrou R$ 1,09 bilhões e o Bradesco R$ 460,6 milhões, faltando ainda a divulgação de importantes bancos estrangeiros que atuam no Brasil.
Segundo Erivelto Rodrigues da Consultoria Austin Assis tal fenômeno financeiro pode ser visto com uma grande transferência de riqueza, pois muito do que o governo pagou a mais nos títulos da dívida pública, que estavam atrelados ao dólar, foram parar no cofre dos bancos.

Essa, porquê não dizer, brutal transferência de riquezas, tem sido possível graças ao “contrato” entre a oligarquia dos coronéis e o baronato financeiro que produziu Femando Henrique Cardoso, que no intuito de levar o Brasil ao “mundo moderno” tem sido capaz de sacrificar seu sistema produtivo pela ausência de política industrial e agrícola em privilégio de um modelo que coloca o país de joelhos em relação à “bondade” do sistema financeiro mundial, concentrando renda, desempregando e condenando as gerações de brasileiros a vagarem pela imensidão da exclusão social.

A tragédia dessa realidade está no fato de não termos nenhuma Pórcia, travestida de doutor em Direito, para afirmar a necessidade de regras, regras que estabeleçam limites éticos à cobiça e à ganância.

Estará para sempre na comédia de shakespeare a grande sentença, quando nas palavras de Pórcia, na iminência de Shylock cortar a libra de carne do peito de Antônio, profere: um momentinho, apenas. Há mais alguma coisa. Pela letra, a sangue jus não tens; nem uma gota. São palavras expressas: “Uma libra de carne”. Mas se acaso derramares, no instante de o cortares, uma gota que seja, só, de sangue, teus bens e tuas terras todas, pela lei de Veneza, para o
Estado passarão por direito.

O que falar diante das gerações de brasileiros que perderam e perdem seu sangue diante da ganância financeira?

*Eduardo Capellari é mestrando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis – SC.

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