OPINIÃO

A túnica inconsútil do cânone João Cabral

Por Dois Santos dos Santos / Publicado em 23 de novembro de 1999

Com a morte de um cânone de João Cabral, elite paulistana apressa-se em apontar sucessor para a vaga de maior poeta brasileiro

Em algum lugar, Octavio Paz escreveu que 80% do que se chama poesia não passa de prosa. A referência introdutória pretende comentar João Cabral de Melo Neto, morto em outubro, que, na companhia de Carlos Drummond de Andrade, é o maior poeta brasileiro do século. Dele muita coisa se disse agora, nem sempre conveniente. Análises variegadas, de jornalistas a professores universitários, visaram situar a importância de João Cabral na cultura brasileira.

Enquête paulistana, seletiva e elitista, apressou-se em apontar o substituto para a vaga de maior poeta vivo do Brasil, e os nomes lembrados, além de Ferreira Gullar, foram dos concretistas (Campos & Pignatari), de Sebastião Uchoa Leite e Francisco Alvim. Fora Gullar, que tem um percurso com altos e baixos, mas de importância nacional, o resto, sem negar-lhes mérito, é reconhecido apenas em suas paróquias, ou por restritos grupos de neófitos do experimentalismo e da vanguarda.

Rigor e concisão, dois termos destacados pelos que lhe dedicaram apreciação póstuma; e que dizem nada, porque incorporados desde o início aos cânones de sua poesia, feito projeto estético-existencial. Rigor e concisão movimentos do gênero poesia-práxis – cultivados no círculo estreito dos súditos incondicionais – ostentavam, qual porta-bandeiras, com resultados bastante duvidosos. Nem é marca qualitativa.

João Cabral era da raça dos “inventores de linguagem”, exigentíssimo. Há uma anedota, provavelmente verdadeira. Quando publicada Morte e vida severina, Vinícius de Moraes elogiou muito; e ele, constrangido, alertou o amigo: “Vinícius, Morte e vida severina eu fiz para os outros; para você eu fiz O cão sem plumas”. Poema que considerava formalmente rigoroso, na expectativa de seus padrões.

Cálculo é palavra acrescentável àquele binômio. O poeta se considerava o engenheiro do verso, e sua maior influência vinha da arquitetura, através de Le Corbusier. Um construtor de poemas, que detestava a inspiração, a espontaneidade e o improviso. Um profissional contra o amadorismo, o excesso e a enxúndia na poesia.

Interessante as idiossincrasias dele, talvez – permitam a audácia – contestáveis.

Não gostava de Fernando Pessoa porque confessional, subjetivo e intimista, portanto, alguém que faz a poesia adoecer; a mesma opinião relativa aos surrealistas, presos à escrita automática, viciados pela subjetividade.

No fundo, João Cabral temia tudo que se refere ao Eu, essa entidade vaga, ambígua e incerta; tinha medo de perder o controle sobre a máquina do poema, onde objetividade, rigor, cálculo, precisão e clareza possuem sentido. Para consegui-lo foi necessário um exercício implacável de lucidez e vigília.

Apesar de ele depreciar o surrealismo e o confessional, parte da melhor poesia de todos os tempos é subjetiva e surreal, desde os filósofos pré-socráticos aos profetas do velho testamento, dos cânticos de Salomão ao Sermão da Montanha, cruzando o Apocalipse de São João Evangelista -que é puro delírio – até contaminar vários poetas modernos e contemporâneos.

Quando Ungaretti diz, no poema Mattina: “M´illumino d´immenso”, intraduzível traduzido, é subjetivo, profundo e maravilhoso; se Juan Gelman escreve “Há muerto un hombre y están juntando su sangre en cucharitas,/ querido Juan, has muerto finalmente./ De nada te valieron tus pedazos/ mojados en ternura”, é impossível ser mais confessional e lírico; Cecília Meirelles em “Motivo”, Drummond em “Confidência do itabirano”, Adélia Prado em “As mortes sucessivas”, Joaquim Cardozo em “O filho pródigo”, para citar alguns. A lista é infindável.

Em dois filmes dos anos noventa o tema aflora, transparente.

Num deles, Sociedade dos poetas mortos, há um adolescente tímido e reprimido, que se recusa a escrever um poema como trabalho escolar. Numa das aulas o professor cobre seus olhos com as mãos e ele se descontrola, vomitando frases desconexas.

Aí o mestre exclama: “Isto é poesia!”; em O carteiro e o poeta, recheado por belas citações de Neruda: “Acontece que às vezes me canso de ser homem”, ou “o cheiro das barbearias me faz chorar aos gritos”. Na hora em que o poeta, à beira mar, solicita ao carteiro um adjetivo e ele diz “triste”, “as redes tristes de meu pai”, que era pescador, compreende- se a diferença entre o realismo (racionalismo) de João Cabral e o desequilíbrio da razão.

Voltemos a Octavio Paz.

Se 80% da poesia que circula prosa, onde ela andará? Encontra- se em tudo que João Cabral refuga.

Ele poderia inverter a proposição de Octavio Paz, com a mesma validade. Porque 80% ou mais da “poesia poética” é absolutamente ruim, frouxa e inferior.

O esforço de João Cabral para expurgar de sua obra qualquer impureza, a busca da poesia substantiva, objetizada, coisificada (ele chamou de antipoesia), teve êxito porque seu talento ficava à altura de suas exigências. Em mãos erradas, “transmutar o prosaico em poético” seria tão desastroso quanto a “poesia poética” que ele rejeita. Seu rigor estava a serviço do real, não era essa experiência meramente estetizante que tantos continuam fazendo.

Ave, João Cabral de Melo Neto, altíssimo poeta.

dois Santos dos Santos é poeta, autor de Sobre Corpos e Ganas (1995)

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