OPINIÃO

Avanço virtual contra Machado de Assis

Ana Maria Koch / Publicado em 23 de novembro de 1999

Tratar-se-ia de um caso sem a menor importância se considerado sob o ponto de vista da situação sócio-econômica do país. Um tema, no entanto, nunca tem só um ponto possível de abordagem, como se esfalfa para demonstrar o personagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Olhado pelo ângulo do conhecimento humano – mais especificamente da atualíssima questão dos direitos autorais somada à da credibilidade das fontes – a questão, no entanto, pode ser incluída na esfera jurídica e tratada, no mínimo, como aparentada ao estelionato.

Explico: me disseram que textos considerados de domínio público são encontráveis na internet. Sai à caça – é claro, prestigiando a literatura nacional e elogiando um autor oitocentista. Busquei uma das obras de (nada mais, nada menos) Machado de Assis. Se na avaliação de personagem da obra, o filósofo Quincas, o meu intento corresponderia a um sadio desejo de folgar, o que eu pretendia mesmo era ter o texto Memórias Póstumas de Brás Cubas digitalizado, ali, prontinho, para me poupar o trabalho de localizar assuntos. Trocando em miúdos, queria escapar da árdua tarefa de ficar revirando as páginas do livro e de admitir que a minha memória…

Achei a obra, mas – inglória e ingrata parte da tarefa de vira-ser pesquisadora – acabei deparando com outra coisa, e bem diferente. Uma das páginas virtuais que oferecia o ambicionado texto apareceu com pompa: “a Virtual Bookstore […] apresenta mais uma grande obra de Machado de Assis”, diz, identificando-se como “a verdadeira livraria virtual da Internet Brasileira”. Tal texto, garantia, foi “scanneado e passado por processo de reconhecimento ótico de caracteres (OCR)” pelo benfeitor, que ainda agradecia aos doadores as ferramentas utilizadas para o trabalho. E diz mais, a página! Incentiva a nossa alegria pela facilidade de acesso ao objeto do desejo:

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A euforia durou pouco. Copiado o texto -aparentemente não foi pirataria – passeei por ele. Surpreendida pelos erros de digitação, deixei-me ir atrás da imaginação, como diria Brás Cubas, e comecei a desconfiar de que não se tratava de um texto “scanneado”. Treinada pela academia para interpretar textos, quando vi já estava comparando a contribuição virtual com o livro editado tradicionalmente, o mesmo que afirmam estar em vias de tornar-se material de museu. Bendito treinamento e bendita desconfiança; só assim, numa primeira vista d’olhos, achei duas ocorrências: no capítulo oito, acréscimo de uma frase no final do texto; no capítulo setenta e um, de duas. Parei por aí.

Ainda recorrendo ao Brás Cubas: se o mundo era estreito para Alexandre; um desvão de telhado é o infinito para as andorinhas. Para o “corretor” da obra literária de Machado de Assis – imagino-o rindo um rir filosófico, desinteressado, superior – aquelas frases poderiam ter sido escritas, sim. Por que não? Quanto a mim, estou mais para o lado do personagem principal da obra: cuido que não nasci para situações complexas. Estou escandalizada, indignada e já abalada em minha recém criada crença na internet como fonte de informação (do debate sobre os direitos autorais escapo: posso não ser tão inocente quanto gostaria). Socorra-me a lógica a la Quincas Borba! Quem sabe nem se trate de um fato tão grave para o conhecimento humano, mas sim de um que pode ser tratado como, na obra, esse personagem considera as epidemias: são úteis à espécie, embora desastrosas para uma certa porção de indivíduos.

*Ana Maria Koch é filósofa, mestre em História e professora

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