Em 2006 há muitos motivos para celebrar, reverenciar e refletir sobre as lutas pela qualidade ambiental no Rio Grande do Sul, no país e no planeta. Em um mês de abril, há 35 anos, era fundada a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural – Agapan. Um dos seus mais ilustres fundadores descansa eternamente em comunhão com a terra há quatro anos, José Lutzenberger, morto em maio de 2002. Por sinal, no próximo mês de dezembro, o Lutz completaria 80 anos. E também, há exatos 30 anos, era publicado o Manifesto Ecológico Brasileiro – O fim do futuro? de Lutzenberger. Há quem fale ou pense em mera coincidência, há quem defenda um autêntico ecossistema de efemérides ecologias.
Trinta anos após a publicação do Manifesto, há espaços para que o movimento ecológico respire e atue. Das reuniões quase clandestinas dos idos de 1976, existe hoje um Ministério do Meio Ambiente. O próprio Lutzenberger foi secretário especial do Meio Ambiente da Presidência da República, entre 1990 e 1992. As questões que envolvem o futuro da Terra são pautadas, discutidas, nem sempre acatadas, porém houve avanços.
A luta por desenvolvimento sustentável se dá em muitas frentes planetárias, desde Kyoto (Japão) – com a preocupação da poluição atmosférica – ao reflorestamento com eucalipto no interior do Rio Grande do Sul. A Terra se tornou, de novo, Gaia.
Por isso é fundamental e necessária uma releitura constante e permanente deste documento produzido com a visão holística de um pensador da dimensão de Lutzenberger, que ainda não lhe foi dada a merecida atenção e reflexão.
Um texto enxuto, escrito de forma emocionada, didática e direta. “Este manifesto dirige-se àqueles que ainda estão dispostos a pensar, a repensar, inclusive, seu próprio esquema mental, seus valores. Dirigimo-nos aos jovens ainda não acomodados, e aos não-jovens ainda idealistas, aos intelectualmente alertas dispostos a fazer sacrifícios por um mundo melhor, mais sábio”, trecho da abertura. Aptidão, talento e sensibilidade, Lutz trazia desde o berço. Além do nome de batismo, herdou do pai, o arquiteto e ilustrador José Lutzenberger, uma vocação para dar atenção a coisas aparentemente de importância menor. Por tudo isso, ao comparar as relações harmoniosas de todo e qualquer habitat, o engenheiro agrônomo José Antônio Lutzenberger fala na “maravilhosa sinfonia da evolução orgânica, onde cada instrumento, por pequeno, fraco e insignificante que possa parecer, é essencialmente indispensável”. A herança que preocupava coração e mente de Lutz não era exatamente a familiar. “Nós humanos somos um aspecto parcial e momentâneo de um incrivelmente longo processo da fantástica história evolutiva do Caudal da Vida que caracteriza nosso planeta.”
E é do próprio princípio da militância ecológica que demonstra de forma explícita que os avanços, as conquistas e as evoluções talvez sejam como a própria evolução da vida no planeta Terra. Eles levam muito tempo para se firmarem, mas são contínuos e irreversíveis em sua progressão.
De pai para filha
Lara Lutzenberger toca em frente a obra iniciada pelo pai, a Fundação Gaia, localizada na região Central do Estado, em Pântano Grande, que é uma prova viva das afirmações desenvolvidas por José Lutzenberger, o desenvolvimento sustentável, a exploração de recursos naturais em harmonia com as leis da vida, o respeito à Terra.
Lara avalia que, quando começou o movimento ecológico, pessoas como seu pai e outros eram tidos quase como alienígenas, “ninguém falava em ecologia” – lembra. “Hoje todos nós, em menor ou maior grau, temos a percepção de que as coisas não estão bem e que existe uma crise social e ambiental, planetária.”
Para ela, ao mesmo tempo em que essas crises se aguçaram, se ampliaram, por outro lado o movimento ambientalista também cresceu e se expandiu. Se no início era um grupo limitado de pessoas, aqui em Porto Alegre, ou em outras localidades espalhadas pelo mundo, a se manifestar, a dar o seu grito de alerta sobre a necessidade de uma reflexão e mudança do modelo, já houve muitos avanços na busca de se encontrar soluções “para enfrentar os problemas que temos pela frente”.
No presente já existem legislações ambientais, organizações que se dedicam a propostas sustentáveis na agricultura, nas energias renováveis e num modelo de economia mais solidário.
Lara Lutzenberger vê como um passo importante, além da mera consciência ambiental, que “a sociedade passe a se ver como parte integrante da natureza e passe a ter uma sensibilidade maior em relação ao seu impacto no planeta e aos problemas que estamos enfrentando”.
Para a presidente da Fundação Gaia, eventos como o Fórum Social Mundial são um sinal de que “significativamente está se refletindo na sociedade como um todo”.
“Vitórias provisórias e derrotas definitivas”
Um dos fundadores da Agapan, Flávio Lewgoy, catedrático e geneticista da Ufrgs, define-se hoje como um pessimista realista. Porém, a ação e as atitudes de entidades como a Agapan eram um “alerta às autoridades”. Para ele, uma das razões para esta sua posição estar na indiferença e na passividade destes tempos atuais. Lewgoy lembrou que “era o Lutz quem dizia ‘nossas vitórias são provisórias, as derrotas, definitivas’”. As lutas ambientalistas, lembrou, remontam ao século XIX, mas os desastres ecológicos e a situação climática do planeta atingiram o limite do irreversível.
Enquanto que, a atual presidente da Agapan, Edi Fonseca, sintetiza: “Parece que foi escrito, ontem, tal é a atualidade de suas denúncias. Continuamos com um modelo predador de utilização de nossos recursos naturais e com uma agricultura dependente dos venenos químicos (os agrotóxicos), destruição de nossas florestas; e o retrocesso na legislação ambiental, através da flexibilização por decretos, resoluções, portarias e medidas provisórias”.
“ Ele tinha uma compreensão profunda de ciências naturais. De química, biologia, física. Seus pontos de vista eram embasados. Além disso, percebeu que a humanidade não poderá sair do impasse em que se encontra se não mudar seus modelos mentais, se persistir em políticas industrialistas e de crescimento”, confirma Lilian Dreyer, jornalista, autora de Sinfonia inacabada – A vida de José Lutzenberger.
Em outras palavras, como está na contracapa da edição da Movimento: “De hoje em diante, deverá ser uma referência obrigatória; não apenas para os que lidam com o assunto, mas para todos os que vêem na ecologia um novo modo de viver”.
Para ler o Lutz
* Manifesto Ecológico Brasileiro – O fim do futuro?, 1976, Editora Lançamento, Porto Alegre. (em forma de jornal). Em forma de livro: Editora Movimento, 4ª. Ed. 98 págs. Este livro foi traduzido para o espanhol: Manifiesto Ecológico – ¿Fin Del Futuro?, 1976, Universidad de Los Andes, Mérida, Venezuela.
* Pesadelo atômico 1980, Ched Editorial, 1ª. Ed. 82 págs.
* Ecologia – Do jardim ao poder, 1985, L&PM Editores. Coleção Univer-sidade Livre, 10a. Ed. 102 págs. – 11ª. Ed. Revisada e Ampliada – 192 págs.,1992.
* Política e meio ambiente, em co-autoria com Flávio Lewgoy e outros, 1986, Mercado Aberto, Série Tempo de Pensar, 1ª. Ed. 115 págs.
* Giftige Ernte – Tödlicher Irrweg der Agrarchemie, Beispiel: Brasilien, co-autores: Michael Schwartzkopff, Eggen-kamp Verlag, Greven 1988, 312 págs.
* Sinfonia inacabada – A vida de José Lutzenberger, de Lilian Dreyer. Vidicom Audiovisuais Edições, Porto Alegre, 2004, 518 págs.
Um paradigma ignorado pela intelectualidade
O Manifesto Ecológico Brasileiro é do tipo de obra que tem a dimensão e importância que a torna capaz de ombrear ao lado de Os sertões (1902), de Euclides da Cunha; Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, ou ainda O mito do desenvolvimento econômico (1954), de Celso Furtado, isto é o que se depreende a partir do libelo por este documento que faz o ambientalista Celso Marques.
Para Celso Marques, conselheiro da Agapan, militante ecologista desde muito antes da publicação do Manifesto, “a repercussão que o Manifestoteve na vida política e cultural brasileira foi muito aquém do que seria de se esperar”.
Citando Lutz, Celso argumenta que: a tecnologia traz no seu bojo um conjunto de relações sociais, econômicas e culturais que fazem parte de um processo de dominação política. E isso é uma das coisas que o Manifestocoloca, “e, sobre essa questão, a intelectualidade brasileira não respondeu, até hoje, de uma forma criativa”. Seria um modo de romper com o atual modelo de desenvolvimento.
O que chama a atenção do pensador Celso Marques é que nunca viu “um intelectual brasileiro de importância se referir a este documento”. Ele não saberia dizer a que fator creditar esta indiferença, ele até considera o fato de sua publicação ter sido bancada por uma editora pequena, de pouca expressão no mercado editorial – a Editora Movimento, de Porto Alegre. Ou se seria pela sua edição original ter saído sob a forma de jornal (Editora Lançamento, também de Porto Alegre, tiragem: 20 mil exemplares), o que poderia dificultar a sua distribuição, ele pondera.
Para ele, o Manifesto “implica o desafio da nossa autonomia política, econômica e cultural”. Segundo ele, existe um vínculo com a terra e o ambiente cultural em que se vive, o nosso bioma. Isso seria um processo de consolidação do Brasil “como uma civilização, uma cultura capaz de um caminho próprio e original”. Deste modo, implicaria uma autonomia cultural e política e o “dizer não a uma série de coisas, especialmente no plano das relações internacionais”.
Celso lembra que o próprio texto de Lutzenberger não menciona tudo isso diretamente, mas aponta nessa direção. Indica tecnologias novas, saídas para crises energéticas, por exemplo. Para tanto, Celso Marques não descarta e critica a omissão e indiferença em relação ao Manifesto, inclusive no meio empresarial brasileiro.
Pela urgência de uma reedição do Manifesto
Nomeado recentemente na presidência da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), Antenor Ferrari é mais um peixe n’água, que há muitos anos atua em favor das iniciativas e movimentos ambientais. No início dos anos 80, foi de Ferrari – então deputado estadual pelo PMDB e presidente da comissão dos Direito Humanos – o projeto que marcou um importante momento da luta ambiental no Rio Grande do Sul. Tratava-se de uma lei que regulamentava o uso, o controle e a comercialização dos insumos químicos, a Lei dos Agrotóxicos, como ficou conhecida.
Ferrari aponta que, no Manifesto, Lutzenberger relata exatamente todas as dificuldades em relação ao futuro.
E, prossegue o ex-deputado: “Ele assistiu a todo o desenvolvimento industrial e a toda irresponsabilidade que a humanidade realizou durante o período da sua vida como ambientalista e como um homem que viveu como militante, e que via um futuro muito funesto e difícil para a humanidade”.
Dispersão – Por outro lado, quanto aos rumos do movimento ecológico, Antenor Ferrari vê com uma certa apreensão. Para ele, à época da ditadura pelo menos tinha um mérito, o de unificar as lutas e agregar simpatizantes, militantes e até mesmo autoridades a se juntarem às causas ambientais; tinham mais força nos meios de comunicação. “Com a redemocratização do país, se politizou muito esta questão, partidariamente”, lamenta Ferrari. Com esta definição partidária dos ambientalistas, deixaram de “ter uma voz firme em defesa da questão ambiental e perderam alguns espaços nos meios de comunicação”.
De qualquer maneira, Ferrari é mais uma voz que se levanta no sentido de que se reedite o Manifesto o quanto antes possível. “Ele é atual e será sempre importante para o futuro.”
Principais vitórias do Movimento Ecológico:
Década de 70
Combate às podas indiscriminadas das árvores de Porto Alegre
Incentivo à criação de Áreas de Proteção Ambiental, Parques e Reservas
Campanha contra a caça indiscriminada
Campanhas contra a devastação da Amazônia
Campanha contra as queimadas
Cursos de Educação Ambiental
Década de 80
Lei dos Agrotóxicos
Constituinte Federal
Constituinte Estadual
Campanha contra o uso de carvão para Geração de Energia
Planejamento Urbano e Regional
Incentivo às tecnologias limpas
Década de 90
Elaboração das Leis Orgânicas Municipais
Campanhas contra a poluição das águas
Campanha contra o patenteamento dos seres vivos
Campanha contra a incineração de Resíduos Sólidos
Criação dos Conselhos Deliberativos das políticas ambientais tais como: CONAMA – Conselho Nacional de Meio Ambiente;
CONSEMA – Conselho Estadual do Meio Ambiente e Conselho Municipal de Meio Ambiente. Elaboração dos Comitês de Bacias Hidrográficas;
FBOMS – Fórum Brasileiro de Organizações Não Governamentais e Movimentos Sociais para o meio Ambiente e o Desenvolvimento;
APEDEMA-RS – Assembléia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente.
Lutas atuais
Combate aos Transgênicos
Poluição dos Recursos Hídricos
Segurança Alimentar
Redução do Consumo
Oposição ao Modelo Energético
Contra os efeitos nocivos das instalações indiscriminadas de Estações de Antenas de Rádio Base – ERBs
Contra a flexibilização da Legislação Ambiental
Discussão dos Planos Urbanos e Ambientais
Campanha pela preservação da biodiversidade do Pampa Gaúcho
Elaboração de políticas públicas contra o capim Annoni e demais espécies exóticas invasoras
Contra introdução de espécies exóticas florestais
Busca de um Modelo Sustentável para o Estado