OPINIÃO

As grandes alamedas

Publicado em 22 de janeiro de 2007

O filósofo francês Michel Foucault começa seu livro As palavras e as coisas, citando uma “classificação de animais” de uma enciclopédia chinesa descoberta por Borges e que parece, à primeira vista, muito divertida. Para os chineses, os animais se dividiriam em “a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, c) sereias, d) fabulosos, e) cães em liberdade, f) que se agitam como loucos, g) inumeráveis, h) que acabam de quebrar a bilha, i) que de longe parecem moscas, j) et cetera, l) incluídos na presente classificação, m) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo”. Na verdade, um exercício lógico de construção de um conceito e de uma identidade, em um determinado momento milenar do conhecimento biológico chinês. O estranho, quase divertido, é perceber a semelhança que existe entre essa lista milenar de animais e as classificações recentes da esquerda latino-americana feitas pelos conservadores. Durante a Guerra Fria, a esquerda foi considerada uma força política coesa e uma ameaça homogênea. Mas agora, segundo os conservadores, as suas divisões e classificações internas são tantas e tão confusas que lembram a classificação dos animais chineses. No início, só se distinguiam os “normais” e “equilibrados” dos nacionalistas e populistas, mas, agora, o quadro complicouse, e já se fala normalmente de esquerdistas “ a) moderados, b) radicais, c) do bem, d) do mal, e) demagógicos, f) refundacionistas, g) etnossociais, h) modernos, i) espalhafatosos, g) anacrônicos, h) autoritários, i) pós-modernos, f) nacional-populares, g) pragmáticos, h) nacional-desenvolvimentistas, i) raivosos, j) narcísicos, l) estriônicos, m) pré-históricos e até m) nazi-fascistas”. No caso da Enciclopédia Chinesa, a confusão pode ser atribuída à Biologia da época. Mas no caso da esquerda latino-americana e de sua vitória eleitoral neste ano de 2006, não é provável que a culpa seja apenas da Ciência Política.

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Arte: Pedro Alice

Arte: Pedro Alice

É perfeitamente compreensível que alguns não gostem do que está acontecendo. Mas qualquer observador mais atento e objetivo percebe que está em curso uma mudança importante na América Latina, uma mudança com relação à história da própria esquerda e de todos os sistemas políticos do Continente. Basta lembrar que, neste início de século XXI, todas vitórias da esquerda foram democráticas e massivas, por maiorias contundentes e com o apoio ativo de populações que estiveram até hoje isoladas e “recluídas” nas montanhas indígenas, no submundo urbano e nos grotões do atraso e da dominação coronelista. Tudo isso depois de 20 anos de ditaduras militares de direita em quase todo o Continente e de mais de 10 anos de governos neoliberais. Frente a isso, o que se destaca como denominador comum desta nova onda de esquerda na América Latina é, sem dúvida nenhuma, a vontade massiva de mudar, a vontade de não voltar mais para trás, mesmo quando ainda não estejam claras as idéias e os caminhos imediatos do futuro. A esquerda latino-americana governou muito pouco durante o século XX, e na hora da sua vitória, no início do século XXI, os socialistas e a social-democracia européia estão vivendo uma profunda crise de identidade. Por isso, o que surpreende neste momento não é a imprecisão das idéias e dos projetos imediatos dos governos eleitos, mas sua unidade em torno de um grande objetivo central: mudar definitivamente o rumo elitista, racista e subalterno da história latino-americana. Esta novidade histórica exige um renovado esforço teórico, porque já não cabe nos conceitos clássicos da sociologia latino-americana, que se transformaram em jargões, como no caso, por exemplo, do “populismo”, que quer dizer tudo, e não significa mais nada.

Em 1944, o historiador e economista austríaco Karl Polanyi publicou nos Estados Unidos uma obra clássica sobre a formação e expansão da “civilização liberal” no século XIX e sobre suas crises e guerras no século XX.² Segundo Polanyi, as economias e sociedades liberais são movidas por duas forças simultâneas e contraditórias, materiais e sociais. A primeira seria de natureza “liberal-internacionalizante” e empurraria as economias nacionais na direção da globalização e da universalização dos mercados “auto-regulados”. E a segunda atuaria em uma direção oposta, de “auto-proteção social e nacional”, funcionando como uma reação defensiva das sociedades ao efeito destrutivo dos mercados auto-regulados, que ele chamou de “moinhos satânicos”. No caso dos países europeus, sobretudo no século XX, esses dois movimentos de autoproteção – nacional e social – convergiram sob a pressão externa das duas Grandes Guerras Mundiais, da crise econômica da década de 1930 e depois da própria Guerra Fria. Polanyi considera que foi essa convergência que viabilizou, depois de 1945, o sucesso das políticas de crescimento econômico, pleno emprego e bem-estar social, consideradas heréticas durante a “era de ouro” da “civilização liberal”, entre 1840 e 1914. Mas fora da Europa e dos Estados Unidos, em particular na América Latina, este “duplo movimento” nunca se deu de forma convergente, pelo menos até o final do século XX.

Karl Polanyi não previu a possibilidade de uma “restauração liberal-conservadora” dos mercados auto-regulados, como a que ocorreu depois de 1980. Entretanto, no início do século XXI, multiplicam-se por todo lado os sinais de uma nova reversão ou “ grande transformação” – nacional e social – provocada pelas desregulações massivas dos mercados nas últimas décadas do século XX e por seu impacto destrutivo sobre o mundo do trabalho e sobre a distribuição da riqueza entre as classes e as nações. A grande novidade, entretanto, é que, desta vez, a reação social e nacional está começando pela América Latina, quem sabe graças à “globalização”. E ainda mais, desta vez – ao contrário da Europa e dos Estados Unidos –, a convergência das duas forças de que fala Polanyi não está sendo provocada por uma guerra, e o movimento de “autoproteção” está vindo do social para o nacional, de “baixo” para “cima” e na forma de um gigantesco movimento democrático, a favor de mais justiça na distribuição nacional e internacional dos direitos, do poder e da riqueza.

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