Sem dinheiro para pagar advogado, presidiários estão abandonados pela Defensoria Pública, que reclama de infraestrutura precária e poucos servidores atendendo. Quem tem dinheiro pode contratar defensores privados e até mesmo seus próprios peritos e laudos alternativos, como recentemente o país assistiu no caso Isabella. O que se vê é uma legislação e duas Justiças, uma para os ricos e outra para os pobres. Enquanto se perpetua essa estrutura perversa afloram defensores da pena de morte e da redução da maioridade penal.Mas esse já é outro debate.
São seis horas de domingo e o termômetro marca 10 graus. Apesar da manhã pouco convidativa, centenas de pessoas fazem fila em frente ao Presídio Central em Porto Alegre. É dia de visita. “Tem gente que traz cadeira e comida para passar a noite aqui”, relata a senhora que vende isqueiros aos familiares dos presos do Central.
A casa prisional tem capacidade para acolher 1.594 homens, mas atualmente há quase o triplo desse número: 4.345. Nas celas convivem entre 17 e 25 pessoas. “O espaço lá dentro é espaço de 3×4 metros”, explica Daiane, que aguarda para ver o irmão Éderson, 24 anos.
O rapaz já completou oito meses atrás das grades depois de ter sido pego em flagrante num assalto a uma farmácia. Mas ele não sabe quanto tempo ainda vai ficar lá: Éderson não foi julgado. “Não tivemos nenhuma audiência com o juiz até agora”, reclama a irmã do detento.
Como ele, a maior parte dos homens que estão no Central pertence à categoria dos “presos em trânsito”, ou seja, aqueles que ainda não têm sentença definitiva, mas estão atrás das grades em condição preventiva ou temporária.
“O tempo máximo para esse tipo de prisão é de 81 dias. Mas no Brasil virou praxe manter milhares de presos aguardando julgamento”, critica o jornalista e consultor em Segurança Pública e Direitos Humanos, Marcos Rolim.
Ele destaca que a regra só vale para pobres, gente sem conhecimento da legislação nem dinheiro para contratar advogado. “O princípio da Justiça é a liberdade”, observa. No Rio Grande do Sul, 5.755 apenados estão na cadeia sem sentença definitiva. Geralmente, um julgamento demora de um a três anos para ser concluído.
Éderson tem um defensor público trabalhando em seu caso. “A única vez que o vimos, foi 40 dias depois a prisão”, reclama a irmã. Daiane não é exceção: na fila é praticamente unânime a reclamação do serviço público de defesa.
“A lei só existe para quem pode pagar R$ 3 mil para um advogado. Quem não tem, é obrigado a enfrentar a burocracia e a humilhação”, ataca Maria Teresinha, moradora de Alvorada, que espera para ver um dos 12 filhos, também preso por assalto à mão armada. “O meu, ficou seis meses sem ver o advogado dele”, queixa-se a senhora ao lado, Elaine.
Defensoria sucateada
Além de ativista dos Direitos Humanos, Marcos Rolim trabalha no Tribunal de Justiça do Estado assessorando um desembargador. Acompanha diariamente a rotina dos milhares de processos em tramitação na casa, e conhece muito bem as situações que relatam os familiares de presos. “O encaminhamento de um processo de pobre é totalmente diferente do de rico”, relata.
O problema não é apenas de discriminação, mas especialmente estrutural. Atualmente existem 315 defensores nomeados pelo Estado, cujos serviços podem ser solicitados por 5 milhões de gaúchos com renda menor que três salários mínimos. “A carga de trabalho é desumana”, desabafa o presidente da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul – Adpergs –, Cristiano Vieira Heerdt.
São quase 2 mil atendimentos por dia. Algumas das 163 comarcas espalhadas pelo estado não possuem sede própria. A de Itaqui funciona na cozinha de uma secretaria municipal. Em Alegrete, o atendimento é feito em um porão. “Da maneira que estamos, fazemos de conta que trabalhamos direito”, lamenta Heerdt.
Em geral, o primeiro encontro entre o acusado e o advogado acontece apenas na apresentação à Justiça. É quando o advogado toma conhecimento do caso. “Antes de começar as perguntas ao réu, o juiz dá uns minutos para combinarem a defesa”.
Terminada a primeira audiência, só voltarão a se falar meses depois, na oitiva das testemunhas. Nesse meio tempo, o defensor vai apagar outros incêndios semelhantes. “Cada um tem centenas de processos para analisar por dia”, expõe Rolim.
Os relatos na fila do Central são Defensoria sucateada semelhantes. Preso em flagrante, o indiciado não recebe o benefício de aguardar julgamento em liberdade. E, uma vez dentro da prisão, é difícil de sair. “Passada a condenação penal, o defensor deixa de atuar junto ao réu”, relata. Ou seja, ninguém se responsabiliza por acompanhar o preso, propor reduções da pena por bom comportamento, solicitar o encaminhamento para regime semi-aberto.
Segundo Cristiano Heerdt, apenas dez defensores públicos trabalham exclusivamente nos presídios do estado. A população carcerária atual é de 26.195 pessoas, para uma capacidade que não chega a 17 mil.
A opção pelo acusador
No dia 25 de abril encerrou-se a única greve na ainda recente história da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul. Foram 52 dias de paralisação depois do veto da governadora Yeda Crusius ao subsídio da categoria. A Assembléia Legislativa manteve a proposta de Yeda aos defensores, mas derrubou o veto para promotores e magistrados. Ou seja, Ministério Público e Judiciário receberam aumento, a Defensoria não. “É uma opção do Estado, financiar a acusação e não a defesa”, acredita Marcos Rolim.
Outra comprovação dessa escolha pode ser encontrada nas comparações numéricas das duas casas. O orçamento do Ministério Público do Rio Grande do Sul é de R$ 500 milhões ao ano, já com os devidos cortes definidos pelo governo para “sair do buraco” em que se encontra. À Defensoria restam R$ 77 milhões, menos do que a verba destinada para publicidade em 2008 pelo governo, estimada em R$ 95 milhões. Existem 700 promotores gaúchos, mais do que o dobro de servidores da defesa. O cálculo da Adpergs estima que com 450 funcionários a Defensoria teria condições mínimas de trabalho.
Quem tem dinheiro paga muito bem pela orientação processual. “Há acusadores que recebem fortunas para pegar um processo”, relata Rolim. Ou seja, advogado público só utiliza quem é pobre, “justamente aqueles que deveriam usufruir do direito universal da defesa, mas não são prioridade”, completa.
FRENTE DE DEPUTADOS PRÓ DEFENSORIA PÚBLICA – No final de abril, por iniciativa do deputado Raul Carrion (PCdoB), foi criada a Frente Parlamentar de Apoio à Defensoria Pública do Estado, na Assembléia Legislativa. A Frente intercedeu favoravelmente aos defensores junto ao Governo durante a greve. Agora, a meta dos deputados é o aumento dos investimentos do Estado na Defensoria, contratação de pessoal e melhoria das condições de trabalho e atendimento da população.
Defensor público ou advogada particular
Dona Olinda está tranqüila em meio à turba enfurecida com os maus serviços prestados pelo Estado. A patroa é advogada e indicou um colega experiente para atendê-la. “Celso é maravilhoso, impecável. O que esse homem fez por mim não tem preço”, rasga-se em elogios a empregada doméstica.
Sob os cuidados de Celso, os dois filhos de Olinda presos estão cada vez melhores. O mais velho, acusado de assassinato pegou apenas três anos de cadeia. “Era para ter sido 30, né?”. O segundo, assaltante, estava prestes a passar ao semi-aberto. “Espero que seja a última vez que venho no Central”, revela. Tudo fácil e relativamente rápido.
É Olinda quem consola dona Ivone. Aos prantos, a mulher conta que não a deixaram ver o filho, pois a tala no braço esquerdo – que ficou imóvel depois de um derrame – não a permitiu tirar a roupa para ser submetida à revista íntima.
Ivone também escolheu um advogado particular para cuidar do caso do filho, que levou R$ 81,00 de um ônibus em Novo Hamburgo. O rapaz é maníaco-depressivo e a mãe teme por sua vida. “Não estão dando os remédios para ele”, chora.
Como ela corre contra o relógio, com medo de mais uma tentativa de suicídio, optou por pagar por um auxílio imediato aaguardar o tempo da Justiça, quase sempre medido em meses ou anos.
Um erro grave, acredita Rolim. “A média dos processos é risível, os advogados são desqualificados e há casos em que é necessária a anulação do processo”, adverte.
Mas ele admite que é uma vantagem que têm os advogados privados populares “Eles podem dar atenção mais freqüente aos clientes, mas na hora de apresentarem o texto da defesa, é uma peça tosca”, revela.
E é justamente esse o grande mérito dos defensores, especialmente dos gaúchos. “São altamente qualificados”, salienta. Ainda que tenham pouco contato com os réus, na elaboração da defesa por escrito – que será analisada pelo juiz na hora de determinar a sentença – os defensores expõem sua retórica com maestria. “Isso tem muito peso aqui no Tribunal”, relata.
O futuro da cadeia
Atualmente, há no Rio Grande do Sul 1,6 milhão de inquéritos sendo analisados pela polícia. “São 270 mil crimes graves, como estupro e latrocínio”, revela o tenente-coronel Florivaldo Nunes, chefe do Departamento de Relações Institucionais e com a Comunidade da Brigada Militar. Tanto trabalho que foi criada uma força-tarefa para concluir uma parcela dos processos. “Serão 27 mil inquéritos solucionados a cada ano”, antecipa.
Parte deles indiciará os acusados, que, fatalmente, depois de julgados, deverão ser presos. Eles vão se somar aos atuais 7mil mandados de prisão existentes hoje no estado. Considerando que a população carcerária já ultrapassa a capacidade dos presídios em precisos 9.765 presos, há que se avaliar onde serão alocados os novos apenados.
“Nunca prendemos tanta gente como em 2007. Foram 26 mil prisões efetivadas”, enumera o tenente-coronel Nunes. Acontece que, sem lugar para colocar tanta gente, os presos foram soltos novamente. “Por isso há uma sensação de impunidade muito forte”, observa.
Para ele estão descartadas as penas alternativas: “80% dos apenados de semi-aberto cometem crimes nas horas em que estão na rua”, aponta. Sem dinheiro para investir na construção de novas penitenciárias, o governo do estado recorreu ao Programa Nacional de Segurança com Cidadania. Com 98% dos recursos provenientes da União, até 2010 serão construídos 15 novos presídios no Rio Grande do Sul.
“A culpa é do Estado”
O diretor do filme Tropa de Elite, José Padilha, condena a omissão do poder público, que, segundo ele, transforma pobres em bandidos. “Números da ONU apontam que há países muito mais miseráreis que o Brasil sem a violência que enfrentamos aqui”, relata.
Padilha compreendeu isso quando estava montando o documentário Ônibus174, que narra a vida de Sandro Nascimento, o homem que seqüestrou um coletivo no ano 2000, no Rio de Janeiro. Depois que o pai assassina a mãe do garoto, ele passa a viver na rua. “A partir desse momento, o Estado é responsável por ele. E se mostrou de diversas formas – assistência social, polícia, presídio – , todas violentas”.
Na rua, Nascimento presenciou a Chacina da Candelária, onde morreram seus amigos. Ele escapou, mas depois foi para abrigos públicos onde era seguidamente torturado. Também esteve preso. “Desde a primeira vez que estive em um presídio, me obriguei a voltar sempre, para estar ali com aquelas pessoas que sofrem espremidas entre 30, num lugar onde cabem no máximo cinco”, revela Padilha.
João Estrella também saiu direto da prisão para o noticiário. Não de polícia, mas de cultura, já que sua história inspirou o filme Meu Nome Não é Johnny, uma das maiores bilheterias brasileiras de 2008.
Oriundo da classe média, Estrella foi julgado por tráfico de drogas. Ainda que indiretamente, ele foi beneficiado por sua condição social. “Estudei em boas escolas e por isso soube expor ao júri meus argumentos com precisão”, revela.
Ele condena o tratamento diferenciado que pessoas graduadas recebem durante a prisão. “Não precisa de diploma para ser presidente do país, nem pode ser o que define cela especial”. E complementa, alertando que o sistema prisional funciona na base da propina. “Num país corrupto, ter dinheiro é excelente”, ataca.