Lynch: entre o cinema e a pregação
Foto: René Cabrales
Desconcertante. Não há outra palavra para definir a passagem recente do cineasta norte-americano David Lynch por Porto Alegre. Autor de uma obra tão consagrada quanto enigmática, ele se recusou a falar sobre cinema, tanto na coletiva para imprensa quanto no seminário Fronteiras do Pensamento Copesul Braskem, do qual participou. Aliás, não fez conferência, apresentou-se numa espécie de talk show, uma conversa conduzida pelo diretor e roteirista Gilberto Perin, que lhe fez perguntas encaminhadas pelo público. Surpreendendo, o cineasta do bizarro, de mundos sombrios povoados por seres confusos, queria falar apenas sobre a felicidade infinita oportunizada pela meditação transcendental.
Ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes de melhor filme por Coração Selvagem (1990) e do prêmio de melhor diretor por Cidade dos Sonhos (2001), David Lynch está preocupado com os jovens. Está tão convicto dos benefícios da meditação transcendental para a felicidade do ser humano que há três anos criou uma fundação para divulgar essa antiga técnica oriental de relaxamento. Através da Fundação David Lynch desenvolve programas destinados a alunos de escolas nos EUA, na América Latina e na África.
O cineasta enfatizou a importância das escolas ensinarem não apenas conteúdos, mas também meios para aquisição do conhecimento. Segundo ele, com apenas dez anos uma criança pode aprender meditação transcendental e isso ajuda a resolver problemas. Com a diminuição do estresse “a perspectiva em relação à vida se torna mais otimista e isso ajuda a tornar a escola um lugar alegre e feliz, para a qual as pessoas vão querer ir”, exemplificou ao falar sobre os benefícios da meditação.
A certeza vem da experiência pessoal. Há 35 anos o cineasta de 62 anos dedica duas sessões diárias de 20 minutos que lhe permitem – ele garante – um mergulho interior “profundo” e a expansão da consciência. No Brasil, além de Porto Alegre, passou pelo Rio, São Paulo e Belo Horizonte acompanhado pelo músico escocês Donovan Leitch, que nos anos 60 trocou as drogas pela meditação transcendental. Junto com o beatle George Harrison tornou-se discípulo do indiano que divulgou a técnica no Ocidente, Maharishi Mahesh Yogi.
Num indisfarçável tom doutrinário, Lynch defendeu a vocação do ser humano para a felicidade. “O potencial do ser é para uma consciência infinita e para o esclarecimento, ou seja, o pleno potencial”. Enfatizou a necessidade de combater a negatividade, que diminui naturalmente com a ampliação do bem-estar. Dissociou a vida da arte, ao responder sobre o conteúdo dos seus filmes, nos quais predomina a representação do sofrimento e da confusão: “contar uma história feliz não vai trazer felicidade”. Só o artista feliz é livre para apresentar qualquer idéia.
Discurso descolado da obra
A surpresa no discurso de David Lynch foi a dissociação que fez entre a dor e o processo de criação. Posicionando-se contra o mito romântico do sofrimento como fonte criativa, defendeu que “o artista não tem que sofrer para mostrar o sofrimento”. Ainda assim, o público cético do Salão de Atos da Ufrgs insistiu, trazendo o exemplo do pintor holandês Vincent Van Gogh, cujo sofrimento teria sido responsável pela intensidade da obra. Sem pestanejar, Lynch argumentou que a pintura não era resultado do sofrimento do artista, mas o único momento no qual ele era feliz, no qual evadia-se de sua dor.
Pintor, cartunista, fotógrafo e músico, o cineasta utiliza a meditação como uma forma de liberar a mente para a criatividade. É o que apresenta no livro Em águas profundas: criatividade e meditação, lançado em 2006 nos Estados Unidos e agora disponível no Brasil pela editora Gryphus. Nele explica os benefícios da meditação transcendental que pratica desde 1973 e como isso lhe ajudou a liberar idéias para seus filmes. São capítulos curtos, com temas esparsos, mas contribui para a compreensão do seu processo criativo.
A obra de David Lynch não é fácil, é possível que seu filme mais inteligível ainda seja O Homem Elefante (1980), do início da carreira, que obedece a uma estrutura narrativa clássica, baseada na linearidade dos sentidos. No último, Império dos Sonhos (2006), o aleatório domina o filme, em sintonia com a personagem de Laura Dern, perdida entre o real e o imaginário. Mesmo difícil, ao contrário de outros cineastas independentes do modelo narrativo dominante, Lynch é popular, é ousado e se mantém dentro do sistema industrial do cinema.
Passagens de seu livro como o capítulo A caixa e a chave, no qual há uma única frase “Não faço idéia do que sejam” e sua recusa em dar explicações sobre o significado de seus filmes indicam o método de criação do artista. Na entrevista para a imprensa enfatizou a multiplicidade de pontos de vista que constituem a vida. Comparou idéias com peixes, sendo que as melhores estão nos níveis profundos do ser. Assim como a qualidade de vida, sobre a qual foi enfático: “não se trata de acreditar, mas de treinar”, garante que quanto mais profundo for o mergulho interior, maior é a felicidade.