OPINIÃO

Tempos líquidos em escolas sólidas

Dra. Jacqueline Oliveira Silva* e Ms. Luciane Lourdes Webber Toss** / Publicado em 16 de julho de 2009

Em “Modernidade líquida” (2001) Bauman***, sociológo polonês, desenvolve a tese de que o mundo de hoje assume características comparáveis à fluidez dos líquidos. A liquidez, como metáfora da fase da história em que vivemos, põe em questão conceitos orientadores da análise sociológica e da organização social praticados nos últimos séculos, caracterizada por Bauman como Modernidade sólida. Conceitos como emancipação, individualidade, tempo, espaço, trabalho, identidade e comunidade são interrogadas pelo autor à luz das transformações ocorridas em nosso tempo e das incertezas que nele estão engendradas.

Bauman articula sua teorização sobre a Modernidade liquida propondo novos encaixes analíticos, para a compreensão da sociedade, considerada por ele, pós-panóptica, numa referência ao fim do modelo de controle social identificado por Michel Focault. Isto implica considerar que a rigidez disciplinar, a estruturação e a normatização da ordem moderna, nas quais as ações humanas encontravam referências e segurança, são substituídas por flexibilidade, incerteza e fluidez, provocando uma constante e profunda ansiedade em relação a difícil tarefa de apreensão da realidade.

No caso dos professores essa ansiedade se amplia dada a ambiguidade que transversaliza os conteúdos, os códigos de conduta, a relação com os estudantes, hoje consumidores, com os colegas, transformados em “equipes de trabalho” e com os empregadores.

Como aponta o autor, estamos num momento em que as organizações sociais (estruturas que limitam as escolhas individuais, instituições que asseguram a repetição de rotinas, padrões de comportamento aceitável) não podem mais manter sua forma por muito tempo (nem se espera que o façam), pois se decompõem e se dissolvem mais rápido que o tempo que leva para moldá-las”.

Hoje, o espaço privado vê-se ampliado, livre da ameaça da coerção e o individuo tem cada vez mais autonomia. O homem encontra-se só, com sua liberdade, seus próprios recursos e a responsabilidade de realização. Resgatar o cidadão da pólis no indivíduo da pósmodernidade é uma tarefa a realizar, pois sem isso, não é possível constituir valores compartilhados e o “Nós, não é mais que um agregado de eus”.

As satisfações físicas e psicológicas, que se dão de forma individualizada, são a formas de realização que restam para o indivíduo. Ser consumidor é o estilo de vida desses tempos líquidos, cujo imperativo é a busca da satisfação dos desejos, sem sacrifícios, do aqui e agora. Desejos estes, compulsivamente substituídos por outros tornando impraticável qualquer estabilidade na vida. Com a perda das perspectivas de longo prazo, a obsolescência impregna tudo ao nosso redor.

Neste contexto de individualização dos projetos de vida a solidariedade e a ideia de comunidade se perdem. No ambiente da escola os espaços de inter-relação e de reflexividade se pulverizam na perda total da autoridade (que aqui deve ser entendida não como disciplinar, mas estruturante do conhecimento) do professor como referência positiva.

A liberdade, agora deslocada para a cultura do consumo torna-se “de longe, na sociedade pós-moderna, o mais essencial entre os fatores de estratificação. Quanto mais liberdade de escolha se tem, mais alta a posição alcançada na hierarquia social pós-moderna”. O ensino privado nesse contexto, exercita esse mecanismo, posicionando o professor no centro do campo conflitivo de exercício dessa liberdade.

Num tempo de indefinições e incertezas, o indivíduo e suas escolhas ocupam agora o lugar central . É o imperativo do faça você mesmo. Não há referências seguras e sim o desmantelamento das redes normativa e protetoras. O Consumo é a palavra de ordem. É através dele que o indivíduo exercita sua visão de estar no mundo. Compra-se tudo, ou quase tudo. Da a imagem à identidade.

A disseminação de informações rápidas em tempo real para todos os segmentos, promoveu a diminuição de características críticas e educacionais dadas ao conhecimento oferecendo aquisição imediata do saber. Os estudantes, imersos na liquidez, demandam uma interlocução para além da padronização da escola moderna demandando atenção individualizada. Para atender tais demandas, os docentes tem buscado tornar-se multifuncionais, recaindo sobre a equipe de trabalho uma maior responsabilidade quanto aos processos pedagógicos e seus resultados. Nesta nova ordem há a noção aparente de liberdade para cumprir metas, mas estas revelam-se de difícil execução exigindo substancial empenho por parte dos sujeitos para alcançarem os resultados exigidos. Além disso, as equipes de trabalho, em geral, contam com um número reduzido de pessoas, originando sobrecarga de trabalho. Impõem-se ainda, a exigência da apropriação dos objetivos da escola, o que exige mais dedicação, apego emocional e envolvimento pessoal.

Os líquidos são suscetíveis a variações contínuas. Os sólidos têm dimensões e formas visíveis e estáveis, se localizam no espaço e no tempo. A tendência de buscar uma ordem estável , territorializada, burocrática, moderna, persiste tensionando a sociedade, em especial nas instituições que historicamente se caracterizaram como reprodutoras da ordem social e cultural ,como as escolas. Esta tensão tem feito com que algumas instituições façam conviver num mesmo espaço um discurso “líquido” e uma gestão solidificante (por exemplo, através da implantação de rotinas de trabalho padronizadas e exaustivas, ampliando as contradições entre o discurso do marketing institucional e o cotidiano). Na Modernidade líquida, não são as normas, as posses ou o controle político os responsáveis pelos comportamentos, mas as capacidades de tornar desejáveis atitudes e condutas que os indivíduos escolham espontaneamente. Esta condição exige um adensamento das formas de sociabilidade e diálogo, incompatível com a atual forma de organização do trabalho em educação, principalmente daquela que pretende-se emancipatório.

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