OPINIÃO

Representando a loucura

O cineasta Carlos Gerbase explica a trajetória criativa de seu novo filme que tem a doença mental como centro da trama
Por Carlos Gerbase / Publicado em 14 de março de 2011
Filmagens também foram feitas no Hospital  Psiquiátrico São Pedro

Foto: Casa de Cinema/divulgação

Filmagens também foram feitas no Hospital
Psiquiátrico São Pedro

Foto: Casa de Cinema/divulgação

Sempre é complicado explicar as origens de um filme, e Menos que Nada não é exceção. Seria uma simplificação grosseira dizer que a trama foi adaptada do conto O Diário de Redegonda, do médico e escritor austríaco Arhur Schnitzler (1862-1931). Mas o conto, sem sombra de dúvida, foi o início de tudo. Trata-se de um texto curto (oito páginas), mas de grande densidade dramática, em que Schnitzler conta a história de um escriturário que se apaixona perdidamente pela esposa de um militar e, sem qualquer possibilidade real de aproximar-se dela, constrói um universo imaginário para viver seu amor. O estilo literário peculiar do autor vienense, que mescla realismo e sonho, ação e devaneio, foi visto no grande filme De olhos bem fechados, de Kubrick, baseado em Breve romance de sonho, uma das obras mais conhecidas de Schnitzler.

O pobre escriturário criado por Schnitzler em O Diário de Redegonda é, ao que tudo indica, um doente mental, um esquizofrênico severo, apesar dessa classificação ainda não estar plenamente estabelecida no começo do século 20. Freud, contemporâneo de Schnitzler, dizia que o desejo se movimenta na brecha entre a realidade e o imaginário. Para um ser humano “normal”, que sabe distinguir bem o que é o mundo concreto e o que é produto de sua imaginação, o desejo é algo saudável, uma manifestação de sua vontade de viver com plenitude e procurar a felicidade. Mas, para alguém que confunde o real e o imaginado, o desejo pode ser um inferno pessoal. O personagem principal de Menos que nada, internado num hospital psiquiátrico, também é um esquizofrênico, e esta é principal ligação entre o conto e o filme.

Muitos filmes foram feitos tendo como base as perturbações mentais. Assisti a muitos deles. De clássicos como Freud além da alma, de John Huston, ao recente Cisne negro, de Darren Aronofsky. Na grande maioria dessas obras, há uma tentativa de representar a vida interior do “louco”, ou do personagem “que está ficando louco”. É uma tentação quase irresistível para qualquer roteirista escrever cenas em que a ação acontece do ponto de vista do doente, fugindo à lógica realista e criando imagens oníricas, perturbadoras, ou simplesmente fantasiosas. O delírio passa a ser, então, a matériaprima de imagens e sons cinematográficos altamente verossímeis. O passo seguinte nos filmes contemporâneos costuma esconder do público o que é “real” dentro do filme, e o que é resultado da elaboração mental do personagem “louco”. Uma brincadeira interessante.

Isso às vezes funciona muito bem, como em Spider, de David Cronenberg, e às vezes funciona – na minha modesta opinião – muito mal, como em A ilha do medo, de Martin Scorcese. Nos dois casos, o público é enganado por um longo tempo. Assiste a eventos que parecem ser reais e, num dado momento, percebe que eles são representações de uma mente delirante. Também é comum que esse instante de revelação não seja assim tão demarcado, como em Cisne negro, ou que venha acompanhado de algum outro ingrediente, como no conto de Schnitzler, em que a conclusão é esotérica (ou assim parece ser para o narrador).

De qualquer maneira, as primeiras versões do roteiro de Menos que nada seguiam essa tradição, alternando cenas “reais” e cenas “delirantes”. Havia também o momento da revelação, em que o público ficava sabendo dos limites entre os dois tipos de representação. E eu sentia que havia alguma coisa errada nessa solução. Me parecia artificial e, de certo modo, fácil demais. Resolvi, num certo momento, abandonar essa estratégia narrativa e construir uma estrutura bem diferente, em que o público, em vez de ser enganado por imagens mentais de um personagem perturbado, se tornasse cúmplice de uma investigação sobre a origem dessas imagens. E aí tudo mudou. Em vez de construir cenas a partir de um “falso imaginário”, escrevi – com a ajuda de Marcelo Backes e Celso Gutfreind – uma história que questiona (assim espero) como se dá a construção do imaginário de um esquizofrênico. Sabemos que Freud admirava os contos e romances de Schnitzler e dizia que o escritor estava fazendo na literatura o que ele, Freud, fazia na ciência: desvendar o inconsciente humano.

No desenvolvimento da última versão do roteiro, teve papel decisivo a leitura – indicada por Gutfreind – de um ensaio de Freud, Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen, em que um conto é analisado em profundidade com ferramentas psicanalíticas. Há um detalhe surpreendente nesse ensaio: o personagem principal da ficção de Jensen é um arqueólogo, a mesma profissão de Dante, o anti-herói de Menos que nada. Coincidência? Talvez não. A investigação psicanalítica pode ser encarada como uma escavação que parte da superfície visível do ser humano e vai penetrando em camadas cada vez mais profundas da sua psique. Esta metáfora já estava colocada – de forma intuitiva – nas versões anteriores do roteiro. Nosso trabalho foi incorporar ao roteiro novas camadas de significados, sem medo de pensar a trama numa perspectiva mais psicológica que nas versões anteriores. Evitamos o jargão e buscamos aproveitar o que o discurso freudiano tem de mais dramático e facilmente assimilável pelo cidadão comum.

O tema da imaginação está bem presente em meus últimos filmes. Em Tolerância (2000), um editor de fotografias usava tecnologias digitais para alterar as imagens, adequando-as ao gosto de público (em seu trabalho profissional) e às suas próprias fantasias (ao navegar na internet com o nick “Ivanhoé” e criar imagens falsas de uma garota por quem se apaixonou). A sua imaginação acaba trazendo problemas bem concretos ao seu casamento. Em Sal de Prata (2005), uma economista bem sucedida tentava descobrir, em roteiros de filmes encontrados no computador do namorado recentemente falecido, conexões entre a ficção e a realidade de suas vidas. Incapaz de desvelar esta relação, ela própria começa a imaginar um passado, baseado em seus maiores temores. Em 3 Efes, a imaginação, chamada agora de “fasma”, é explicitamente citada como um dos aspectos fundamentais da existência humana, ao lado da fome e do sexo. Uma jovem estudante é obrigada a prostituir-se para sustentar o pai e o irmão, descobrindo que, antes de “ser” uma garota de programa ela precisa imaginar-se como tal. Ou seja, precisa descobrir uma linguagem que componha esse novo personagem.

Minha motivação principal em Menos que nada foi dar mais um passo nesse conjunto de reflexões sobre a imaginação humana. Dante, o personagem principal do filme, perdeu a noção da realidade, e, em vez de usar a linguagem para construir um mundo mental capaz de dar significados à existência, é “usado” pela linguagem, transformando-se num ente de significados incompreensíveis. A psiquiatria e a psicanálise criaram um grande conjunto de denominações para as patologias mentais – sendo a esquizofrenia e a psicose as que mais se aproximam do estado de Dante – mas creio que essas classificações são inúteis se não houver, na base do tratamento, o reconhecimento do doente como um ser humano completo, em suas dimensões físicas e psíquicas.

Creio que foi apenas no último tratamento do roteiro, em que foram introduzidos novos personagens e uma nova dimensão temporal, que este fato ficou mais claramente exposto. Paula, a psiquiatra que assume o tratamento de Dante, funciona como um detetive. Ela está interessada em encontrar as origens do desequilíbrio mental do seu paciente, em vez de simplesmente classificá-lo como “crônico” ou “incurável”. A noção de que a esquizofrenia, em suas formas mais severas, não tem perspectiva de cura, não significa que o doente perdeu sua condição humana e está condenado a uma existência sem qualquer comunicação com o outro e com a sociedade. Freud já anunciava que a psicanálise, em muitos casos, tenta transformar um sofrimento insuportável em infelicidade comum. É assim que se comporta a psiquiatra Paula em relação a Dante. Outra noção importante é de que o processo de degeneração mental nunca está totalmente desligado das relações familiares e sociais. As entrevistas feitas pela médica permitem que ela desvende, pelo menos parcialmente, as razões da primeira grande crise de Dante, e, a partir daí, talvez torne possível imaginar uma existência mais humana para um homem que já tinha se transformado em “coisa”.

Também foram importantes os ensinamentos dos livros Teoria e clínica da psicose, de Antonio Quinet, Psicose e mudança, de Diatkine, Frings, Andreoli, e Psiquiatria e anti-psiquiatria, de David Cooper. Estes textos deixaram claro que a doença mental tem uma relação íntima com o imaginário e com a linguagem. O psicótico, em seu delírio, está criando um mundo em que possa viver, já que a realidade é insuportável. Assim, o seu delírio é, ao mesmo tempo, sintoma de uma doença (para quem observa) e tentativa de cura (para o próprio doente). A psiquiatra Paula, que conduz a narrativa do filme através da sua investigação, sabe que o delírio de seu paciente Dante não é uma coleção aleatória de ações. Mas dar significado a essas ações não é tarefa fácil, tanto que o seu preceptor no hospital psiquiátrico, o Dr. Sérgio, já desistiu de Dante, considerando-o irrecuperável.

Ao escolher Dante como objeto de estudo, Paula se impõe um desafio e, à medida que avança, percebe que o próprio Dante quer ajudá-la. Entrevistas com parentes e pessoas importantes para Dante (captadas pela própria médica e mostradas para o paciente) e uma mudança da medicação fazem com que ele volte a se comunicar. Mas isso também faz de Dante um paciente mais agitado e, quem sabe, até mais perigoso. Paula terá de insistir e se arriscar para obter resultados. Mas essa é a única forma de resgatar parte a vida psíquica de Dante. A abordagem que Menos que nada faz à doença mental é, portanto, não-dogmática. Não se trata de uma denúncia do sistema manicomial, nem de uma exposição de teses freudianas. É o relato de uma situação bastante comum na sociedade brasileira – o quase abandono de doentes mentais – e a história de uma médica lutando para dar uma vida mais humana para seu paciente. Se esta abordagem é a mais indicada, só saberemos quando o filme for lançado, no final deste ano.

Esquizofrenia na tela

Menos que nada, longa-metragem de Carlos Gerbase que está em fase de finalização, tem lançamento previsto para o segundo semestre de 2011. De acordo com o próprio Gerbase, o tema central é a loucura e seus desdobramentos. Paixão, psicose, perturbação mental. Vidas que se dividem entre antes do surto e depois do surto. Traição. Internamento. Drogas. Desesperança. Solidão.

A realização é da Casa de Cinema de Porto Alegre e traz no elenco Felipe Kannenberg (Olga), Rosanne Mulholland (Falsa loura), Branca Messina (Não por acaso” e Maria Manoella (Mulher invisível).

A trama do longa-metragem gira ao redor de “Dante” (Felipe Kannenberg), que está internado num hospital psiquiátrico com diagnóstico de esquizofrenia.

O projeto se viabilizou por ter sido premiado no concurso para mídias digitais da Petrobras. As filmagens ocorreram entre dezembro do ano passado e fevereiro deste ano, em Porto Alegre, praia do Cassino e proximidades do banhado do Taim, Arroio do Sal e Araçá. Na capital gaúcha, os principais cenários foram o Hospital Psiquiátrico São Pedro (que no filme chama-se São Tomás de Aquino) e a PUCRS. O blog do filme é www.menosquenada.com.br

 

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