Enem deixa a literatura de lado
Desde 2009 a prova está dividida em quatro matrizes de referência, cada uma com 45 questões (até 2008 a prova toda era composta por apenas 63 questões): “Matemática e suas Tecnologias”, “Ciências da Natureza e suas Tecnologias”, “Ciências Humanas e suas Tecnologias” e “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”. Esta última área (com questões que envolvem Língua Portuguesa e Línguas Estrangeiras, Literatura, Tecnologias da Informação e da Comunicação, Linguagem Corporal e Arte) foi objeto da pesquisa que apresentamos agora, e que vem sendo realizada desde o início deste ano na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Tradicionalmente, o que é cobrado no vestibular tende a ditar o programa de ensino das escolas, e o que não é cobrado acaba por desaparecer. Na medida em que cada vez mais as universidades estão substituindo seus tradicionais vestibulares pelo ENEM, a tendência é que ele seja o novo paradigma. Nossa preocupação como professores de literatura foi investigar o que se cobra dessa disciplina na prova: tentamos identificar que sinais a prova do ENEM transmite para o Ensino Médio em suas questões sobre literatura. (Os defensores da prova tal como ela está nos chamarão de “conteudistas”, como um xingamento; podemos aceitar a pecha, se ela significar que estamos querendo descobrir o que de fato cai na prova, encarnando concretamente habilidades e competências que são mencionadas na filosofia do ENEM.)
A fim de responder à questão, analisamos todas as provas do ENEM (de 1998 a 2010, incluindo a prova vazada de 2009) e classificamos todas as perguntas que envolviam literatura em cinco categorias: 1) questões de literatura stricto sensu (história da literatura, análise formal do texto literário, interpretação do texto literário e figuras de linguagem, questões que são normalmente encontradas nas provas de literatura dos melhores vestibulares); 2) questões que relacionam língua e literatura (textos literários para reflexões linguísticas, gramaticais e funções da linguagem); 3) questões que abordam arte e literatura (relações entre literatura e outras linguagens artísticas, como artes plásticas, cinema, escultura, fotografia); 4) questões de literatura e humanidades (com enfoque nas relações entre literatura e história, geografia e outras disciplinas da área); e, por fim, 5) questões de literatura e ciências (questões que apresentam literatura e a relacionam com biologia, matemática, física e outras ciências).
Dados
Assim, de um total de 1233 questões de todas as provas do ENEM, encontramos 164 envolvendo literatura, das quais 50% podem ser consideradas do primeiro grupo, ou seja, questões de literatura stricto sensu. Vale esclarecer que por literatura consideramos textos críticos, letras de canção, Histórias em Quadrinhos (HQS), além dos textos literários tradicionais, contos, romances, poemas, etc. Ou seja, nossa pesquisa foi feita entendendo literatura como qualquer manifestação que envolvesse fruição estética. Analisando essas 164 questões, encontramos os seguintes dados:
a) Em média, o percentual de literatura na prova gira em torno de 13% das questões apresentadas. A exceção fica por conta do último ano, quando o percentual dessas questões caiu pela metade: de 12,2% em 2009 para 6,1% em 2010.
b) Carlos Drummond de Andrade é o autor que mais aparece, com dezenove ocorrências, seguido por Machado de Assis e Manuel Bandeira, com sete aparições cada. Vale ressaltar que entre os dez primeiros da lista temos três autores de HQs, como Quino (o autor de Mafalda aparece cinco vezes), Jim Davis (autor do Garfield, com quatro ocorrências) e Bob Thaves (autor de Frank e Ernest, também com quatro ocorrências). Embora sejam autores que aparecem frequentemente nos vestibulares e que nenhum professor de literatura deixa de apresentar a seus alunos, Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues e Álvares de Azevedo aparecem somente uma vez cada ao longo das quatorze provas.
c) Poesia e letra de canção, somadas, são 42% das questões de literatura, enquanto romance, conto e crônica somam juntos 26,7%, o que revela um peso maior para os gêneros líricos em comparação aos narrativos. Em contraste, as HQs, sozinhas, representam 19% da prova de literatura, mais do que todos os outros gêneros isoladamente, exceto poesia.
d) Em relação aos períodos de nossa literatura presentes na prova, o Modernismo dos anos 1920 e 1930 é o que mais aparece, com 49 questões, cerca de 30% do total. Os períodos literários anteriores a 1920 somam juntos 31 questões, representando cerca de 19%.
Em outro passo da pesquisa, decidimos investigar quais questões, entre as que envolvem literatura, prescindiriam do ensino dessa disciplina, ou seja, quais poderiam ser respondidas sem que o aluno tivesse assistido a uma única aula de literatura na vida. Aí talvez tenhamos o dado mais assustador: as aulas de literatura são dispensáveis para responder cerca de 80% das questões. Isso porque a maioria das questões do ENEM só exige do aluno a interpretação direta de um texto dado; nada de relações históricas, entre autores ou períodos literários, de contextos estéticos, de traços de teoria literária, que são assunto de uma boa aula de literatura.
Se entendermos o poder normativo do ENEM e o quanto este exame tem crescido em importância para o Ensino Médio, podemos praticamente decretar a morte das aulas de literatura na escola (quer dizer, aulas de tradição literária, ou pelo lado formal, ou pelo lado dos contextos históricos e estéticos, ou pelo lado da leitura da tradição literária em si, isto é, das linhagens de gênero e tema, os romances, os contos, a poesia épica, a literatura nacionalista, etc). Nos anos de 2000 e 2005, por exemplo, todas as questões envolvendo textos literários podiam ser respondidas sem que o aluno tivesse assistido a qualquer aula de literatura; em 2010, cuja prova já representa a “nova cara” do ENEM, o mesmo ocorre com 92% das questões. Consequência: as escolas que se guiarem somente pelo ENEM – e não serão poucas – estarão licenciadas a abolir aulas de literatura, ou a criar programas de literatura que prescindam da leitura direta de textos literários.
Conclusões
Obviamente, as consequências desse panorama são desastrosas. Muitas vezes, as aulas escolares de literatura são a única porta de entrada do aluno para o universo da cultura e da arte. Por ela, nossos jovens podem entender que homens se incumbiram de criar poemas e histórias que dizem tanto de si quanto da época em que viveram, ajudando a explicar melhor a trajetória da humanidade. A física aristotélica não é mais estudada, mas sua Poética sim. Por quê? Porque uma literatura não se torna obsoleta, ao passo que uma teoria ou tecnologia pode ser substituída para uma explicação melhor. Se medirmos todas as disciplinas numa mesma regra, corremos o risco de tratar Luís de Camões, Gonçalves Dias, Simões Lopes Neto, Erico Verissimo ou Mário Quintana como tecnologias de entretenimento – que podem ser substituídos com a chegada de novas diversões – e não como os patrimônios culturais que são (e aos quais qualquer um de nós têm direito) e que só podem deixar de sê-lo ao longo de gerações de leitores.
Seria interessante que cada área refizesse nossa pergunta: o que o ENEM está impondo para o estudo de sua matéria? Na literatura, está claro que o estudante precisa demonstrar somente a habilidade de decodificar textos (nesse sentido, Drummond está na mesma posição que uma placa de ônibus, uma letra de rap, a poesia épica de Homero ou um discurso político), mas não importa que ele reflita sobre os textos ou entenda-os historicamente, e isso é certamente uma perda. Nas escolas, preocupadas com suas notas na prova, também não será mais exigido que o aluno entenda e apreenda a literatura? E onde esse estudante entrará em contato com nosso patrimônio literário e cultural?
* Professores de Literatura que integram pesquisa vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS, coordenada por Luís Augusto Fischer.