Foto: Acervo Pessoal
Chico Buarque de Hollanda, que há poucos meses esteve com sua turnê Caravanas em Porto Alegre, tem uma inegável importância para a cultura brasileira, através de uma obra diversificada e, ao mesmo tempo, muito coerente e coesa. Isso se dá em face à complexidade que cerca tantos núcleos temáticos, que estão amarrados não somente a contextos históricos específicos, como também à atemporalidade que abarca diferentes situações humanas.
[Nota do editor: em novembro, Chico Buarque recebeu dois troféus Grammy Latino, de melhor canção em língua portuguesa, com As Caravanas, e melhor álbum de música popular brasileira, As Caravanas]
São inúmeras as possibilidades que a vasta obra de Chico Buarque suscita, como por exemplo, a questão do feminino, do trabalho, da exclusão social, da prostituição etc. Vale destacar, entretanto, um assunto bastante recorrente em nossos dias, que é a questão da sensualidade e do erotismo.
Mas essa temática difere daquilo que a maioria das pessoas concebem em relação a ela. Na verdade, há muito pouco erotismo em nossa vida cotidiana. Parece estranha essa afirmação, a se considerar a exposição de corpos cada vez mais desinibidos e aperfeiçoados pelas academias e salas cirúrgicas, bem como o apelo e banalização cada vez maiores do assunto sexo. Mas, se nos remetermos ao conceito de erotismo ligado à psicanálise e à filosofia, percebemos que o arquétipo de Eros não diz respeito somente ao aspecto secundário da sexualidade. Ele remete também a uma plenitude de bem-estar e de ânimo especial, oriunda de um impulso vital entusiástico direcionado à ligação amorosa, à amizade e à propagação de beleza, numa integralidade prazerosa que envolve corpo e alma em qualquer atividade humana bem-sucedida. Nesse sentido, a expansão de Eros pode ocorrer, por exemplo, através da arte – um show de Chico Buarque ilustra bem isso –, da fantasia ou até mesmo do contato lúdico com a natureza.
Através dessa perspectiva, pesquisei, em meu mestrado, a temática do erotismo na poesia do compositor, fato que resultou na publicação de um livro, em 2012 – livro esse que tive a oportunidade de entregar para o cantor quando ele esteve agora em agosto na capital. Nesse estudo, ficou claro que a obra do artista carioca reconhece, de fato, o poder manipulador advindo dos excessos capitalistas e do trabalho desgastante, que desviam nossa potencialidade e energia vital para a produção e o consumismo:
“Tenho um peito de lata
E um nó de gravata
No coração
Tenho uma vida sensata
Sem emoção
Tenho uma pressa danada
Não paro pra nada (…)
Tenho um metro quadrado
Um olho vidrado
E a televisão
Tenho um sorriso comprado
A prestação”.
Por outro lado, a poesia de Chico Buarque nos remete a uma existência menos racional e mecânica, graças à erotização libertária e sensível das relações humanas:
“E se, de repente
A gente não sentisse
A dor que a gente finge
E sente
Se, de repente
A gente distraísse
O ferro do suplício
Ao som de uma canção”.
A poesia de Chico Buarque sugere uma equilibrada instauração do princípio de prazer em nossa realidade. As possibilidades, ainda que de certa maneira utópicas, de uma melhor erotização de nossa sociedade, merecem crédito. Uma energia, advinda de um erotismo pleno, se faz necessária para se suportar o princípio de realidade vigente. Uma energia que parte em direção ao “que não tem limite”.
* Leandro Henrique Ortolan é professor no Instituto Federal do RS e FTEC (Bento Gonçalves)