Crise ou projeto no ensino superior?
Foto: Diego Rocha/ MEC/ Divulgação
Redução de matrículas no ensino superior, demissões de professores e pesquisadores em escala elevada, redução de horas e projetos em pesquisa, cessamento da oferta de cursos não lucrativos, reestruturação e otimização de currículos e opção pelo ensino a distância (ensino híbrido) configuraram o cenário no começo deste ano. A causa para todas essas medidas é pública: crise econômica, desemprego, redução da renda e suspensão dos programas de financiamento estudantil.
De acordo com os dados da Pnad Contínua, do Ibge, no Rio Grande do Sul há mais de 2 milhões de pessoas com ensino médio completo que não estão matriculadas na educação superior, o que representa 82% da população com ensino médio completo. Considerando apenas a população entre 18 e 24 anos, há em torno de 350 mil pessoas com ensino médio completo que não estão matriculadas na educação superior, representando 55% da população nessa idade com diploma do ensino médio. Em torno de 130 mil pessoas que não estão matriculadas na educação superior se encontram na Região Metropolitana de Porto Alegre.
Em textos anteriores já procuramos demonstrar o desmonte das políticas públicas no campo da educação. O acesso ao ensino superior estagnou e começou a retroceder a partir de 2016. O pretexto do governo anterior era a crise e o desequilíbrio fiscal. Porém, o atual ministro da educação assume o mesmo discurso como proposta e projeto do novo governo: “a ideia de universidade para todos não existe” e “as universidades devem ficar reservadas para uma elite intelectual, que não é a mesma elite econômica”, disse Ricardo Vélez Rodríguez. Cabe, de antemão, registrar que o direito ao acesso ao ensino superior, independente de classe, etnia, cor e gênero, não caracteriza obrigatoriedade, nem ao demandante, nem ao Estado. Apenas é um direito democrático que deve ser garantido para todos. Requer condições e planejamento.
Essa manifestação do ministro da Educação não é mais uma das suas falas desastrosas e indevidas. Trata-se de uma concepção, de uma visão, de um projeto que se aprofunda na perspectiva de interromper a incipiente expansão e democratização do acesso ao ensino superior nas últimas duas décadas.
Somente 16,3% da população brasileira entre 25 e 34 anos possui educação superior. O Brasil está atrasado em relação ao México (21,8%), Colômbia (28,1%), Chile (30%), Portugal (34%), sem falar nos Estados Unidos (47%), Reino Unido (52%), Rússia (58,2%) e Coreia do Sul (70%), dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do último Censo Inep/MEC. Todos países passaram por crises e, para superar as crises, investiram pesadamente em educação. Brasil teima em fazer o contrário: na crise, aprova a PEC 95, impedindo investimentos em educação e ciência.
Outro grande desafio brasileiro é a diversidade do sistema de ensino superior (universidades, centros universitários e faculdades) e a hegemonia da oferta privada: 75,3% das matrículas. Para o Professor José Carlos Rothen, “a educação superior é cara, pois é onde se transmite a cultura, a ciência e as técnicas nos seus mais altos níveis. Todavia, as instituições privadas, para atender ao “mercado consumidor” da educação, procuram, em grande parte, ser instituições de baixo custo”. Já Simon Schwartzman salienta que, para “entrar no sistema federal, milhões de estudantes enfrentam a prova do Enem, disputando 300 mil vagas”, e, depois de quatro anos, 30% dos estudantes que entraram abandonam os estudos. No setor privado, 40% não concluem o curso que iniciam.
Recente estudo desenvolvido por pesquisadores do Centro Brasileiro de Pesquisas em Democracia (CBPD-PUCRS), teve como objetivo verificar se nas últimas duas décadas (1995-2015), em decorrência desse processo de expansão e, também, da ação de políticas públicas, podia-se identificar uma redução das desigualdades de acesso ao ensino superior no Brasil.
Segundo André Salata, pesquisador responsável (PUCRS), as principais conclusões do estudo permitem afirmar que: a) a origem social dos jovens ainda exerce forte efeito sobre as chances de ingresso no ensino superior no Brasil, a despeito da expansão desse nível educacional; b) a principal barreira de acesso ao ensino superior se encontra na conclusão dos níveis precedentes de ensino; c) assim como já verificado em diversos outros países, a expansão do ensino superior não leva, necessariamente, à democratização da barreira de acesso ao mesmo; tomando como referência o período 1995-2015, foi somente nos últimos dez anos que a expansão foi acompanhada da democratização do acesso; d) houve uma acentuada redução do efeito de classe sobre a chance de alcançar o ensino superior que parece estar mais atrelada à democratização do acesso aos níveis anteriores de ensino do que ao ensino superior em si mesmo e, e) à redução das desigualdades de acesso, se contrapõe uma possível elevação das desigualdades horizontais dentro do próprio ensino superior. Ver estudo completo: revista Tempo Social – USP (v. 30, n. 2).
A grande expansão da educação superior que ocorreu no Brasil entre 1995 e 2015 se deu graças à expansão da oferta pública estatal (aumento de 50%) e duplicação da oferta privada mediante financiamento estudantil público, principalmente através de programas como o Fies e o ProUni. Porém, foi somente na década entre 2005 e 2015 que efetivamente ocorreu uma redução das desigualdades no acesso ao ensino superior, mediante programas e políticas de Estado, conforme evidência a pesquisa desenvolvida pelos pesquisadores do Centro Brasileiro de Pesquisas em Democracia (CBPD-PUCRS). Ou seja, foi o Estado que viabilizou a expansão e a democratização do acesso, em um curto e recente período, pois desde 2016 voltamos a retroceder.
As ideia e concepções do atual ministro da Educação, do governo Bolsonaro, nos remete aos anos de 1960 – “universidade para todos ou para uma elite intelectual?”, que precedeu a reforma de 1968, bem como a reforma da educação básica de 1971, com o ensino médio profissionalizante. A mera coincidência é que na época estávamos sob a ditadura militar e, hoje, sob um governo eleito com hegemonia militar. O problema é que o ministro nos traz um falso dilema, alerta José Carlos Rothen, da Universidade Federal de São Carlos. Primeiro, porque ao levar em conta apenas as demandas dos estudantes por qualificação profissional, desconsidera as demandas de profissionais qualificados, de ciência e reflexão sobre a cultura. Segundo, o país ainda forma poucos profissionais em nível superior e, terceiro, o ministro confunde diversificação de formação com a polarização universidade/educação básica/formação técnica. O investimento se faz necessário em todos níveis e modalidades, pois são complementares.
Portanto, o caminho não é restringir a educação superior a um pequeno número de universidades, no modelo tradicional, para uma elite intelectual. O caminho é desenvolver um sistema cada vez mais amplo, democrático, universal, laico, para atender aos diferentes públicos, reduzir os privilégios de mercado de trabalho associados a competências e formação. Manter a expansão da rede federal, retomar o financiamento público estatal para jovens trabalhadores, em instituições comunitárias e particulares de qualidade, é o caminho mais viável e eficaz.
Transcorridos quase dois meses desde que o professor Ricardo Vélez Rodríguez foi anunciado ministro da educação, nenhum projeto ou ideia para educação básica e superior foi apresentada por ele e sua equipe para a sociedade brasileira; nenhuma palavra de apoio e valorização aos professores foi dirigida; nenhum diálogo com a comunidade acadêmica e científica foi estabelecido e, os estudantes, maiores protagonistas do processo educacional, sequer foram recebidos e ouvidos.
Porém, o ministro já desqualificou o brasileiro e nos caracterizou como canibais e, ainda, como aquele “que rouba coisas em hotéis” quando viaja; ele acredita que as universidades são centros de doutrinação, de marxismo cultural, e ataca a autonomia dos professores e das universidades, alimentando uma teoria paranoica e conspiratória, baseada no senso comum. Porém, na verdade, ele teme, que a investigação livre e crítica, produzida no meio acadêmico, ajude a cidadania a desvendar o obscurantismo a que está sendo induzida.
Para o professor Gaudêncio Frigotto (Uerj), esse fundamentalismo político, desde a campanha, nos meses de montagem da equipe e no primeiro mês de (des)governo, se expressa abertamente pela ideia da eliminação da esquerda e do pensamento divergente. Isso equivale a criminalizar todos aqueles que defendem a justiça, os direitos sociais e subjetivos. A cultura do ódio, a pedagogia da ameaça e do medo e a indução à eliminação dos adversários e do diferente são o que praticaram os regimes fascistas ou protofascistas. As teses do movimento Escola sem Partido, de que alunos e pais denunciem os professores esquerdistas ou quem defenda a “ideologia de gênero”, que a escola pública seja regida pelo código do consumidor e que os pais são donos dos filhos, foram parte da plataforma de campanha.
Concepções e ideias como as expressas pelo ministro da educação confirmam o que previa Darcy Ribeiro, que a negação da escola pública de qualidade para a maioria dos jovens do povo não era uma falha, mas um projeto da classe dominante brasileira. Inviabilizar que milhões de jovens brasileiros frequentem a universidade interessa apenas a essa elite, em detrimento do futuro do país, das juventudes e da vida. O exemplo real é Brumadinho, onde interesses econômicos se sobrepuseram a tudo e a todos.
A educação, os estudantes e o Brasil merecem um ministro da Educação melhor!
Gabriel Grabowski, filósofo, doutor em Educação, professor e pesquisador, integra a equipe de colunistas do Extra Classe desde janeiro de 2017. Escreve mensalmente sobre questões da dinâmica no meio educacional.