Foto: Thinkstock
Enquanto o Vai ter shortinho, sim! foi a palavra de ordem que movimentou a volta às aulas em 2016 no Rio Grande do Sul, neste ano o foco poderia ser sintetizado pelo Vai ter listão feminino, sim!
Em comum, temos duas mobilizações feitas por meninas: a primeira, focalizando o direito de usar uma vestimenta mais apropriada para o verão escaldante de Porto Alegre; e a segunda, como resposta à prática do chamado “listão”, onde os meninos “escalam” as alunas mais bonitas, como em um time de futebol, com as suas respectivas posições determinadas pelos atributos físicos associados a cada uma das “jogadoras”.
Várias interpretações podem ser dadas para o “listão” dos meninos: brincadeira de adolescentes, reconhecimento da beleza feminina ou manifestação machista? A escolha de uma dessas explicações irá implicar, obviamente, em demandas distintas para a escola. Contudo, parece existir algum elo entre essas questões, assim como não nos parece casual que praticamente sejam as mesmas escolas envolvidas nessas duas mobilizações. Vamos aos fatos…
Visto como brincadeira de adolescentes muitas instituições têm feito “vista grossa” para esta prática, muito embora as meninas sejam constrangidas no ambiente escolar e até mesmo fora dele, pois virou tema das redes sociais, via de regra, com comentários que raramente podem ser caracterizados como engraçados ou jocosos. Assim sendo, caberia à escola seguir a recomendação de Chimamanda Ngozi Adichie, no livro “Para educar crianças feministas”, sobre a necessidade de questionar a linguagem, pois ela é o repositório de nossos preconceitos e nossas crenças.
É Justamente pela forma grosseira com que a beleza feminina é exaltada entre os meninos autores dessas listagens que tampouco podemos afirmar que se trata de uma admiração pelas mulheres, mas de um tipo peculiar de desvalorização do feminino. Nele, a ideia de “musa” não passa de uma objetificação barata, como se o ideal de uma mulher fosse agradar ao homem e o seu corpo pudesse ser de livre acesso para qualquer um. Essa banalização da imagem feminina não deveria, portanto, ser naturalizada, inclusive porque esteve historicamente relacionada à cultura do estupro ou, no mínimo, aos esforços redobrados das mulheres bonitas em provar que são mais do que uma estampa.
Como feminismo e feminilidade não são mutuamente excludentes, não se trata aqui de reforçar a ideia de que as feministas não se importam com a beleza, mas de afirmar o tipo de beleza de cada mulher, o que equivale a não universalizar critérios ou se submeter às expectativas alheias. A ação pedagógica, nesse tipo de caso, envolveria discussões sobre as pressões derivadas de uma “ditadura da beleza”, especialmente em um cenário de obsessão pela forma física, que tem levado as adolescentes a uma guerra com o espelho e a graves transtornos alimentares.
É no confronto de tais posições que alguns grupos de alunas vêm se manifestando, criando “listões femininos” em redes sociais. Nesses espaços, as meninas contestam os argumentos masculinos de que se trata de uma diversão que não ofende ninguém ou de que elas estariam problematizando demais ou se vitimizando. Na maioria das vezes as alunas não reivindicam ser defendidas pela escola ou reverenciadas pelos meninos apenas por serem mulheres, uma vez que o seu ponto de partida não tem sido a fragilidade feminina.
Todavia, elas apresentam fragmentos de cartografias acerca das consequências catastróficas quando as mulheres se sentem aprisionadas ao olhar do outro. Evocam os inúmeros casos de “meninas se matando por aí por depressão e falta de autoestima”, ao mesmo tempo que questionam o padrão utilizado pelos meninos, com critérios inatingíveis (“um monte de gente enfiou na tua cabeça que beleza é cabelo liso, rosto delicado e corpo definido”).
Um dos manifestos femininos que circulou com muitos likes traz duas sinalizações. Para as meninas é esperada uma maior sororidade (“como vocês se sentiriam com um monte de perfis e listas te lembrando todo o tempo que tu não é bonita o suficiente? Não fomos feitas para sermos jogadas uma contra as outras”). Por outro lado, é lembrado para os meninos que “tem coisa muito mais produtiva pra ser feita no colégio e em outros espaços”.
Creio que essas demandas deveriam ser, acima de tudo, levadas em conta pelo corpo diretivo e docente dessas escolas. Não se pode minimizar ou negar situações sexistas no ambiente escolar, sobretudo em instituições que se pretendem vanguarda na educação. Cabe ressaltar que esse processo de naturalização é justamente um dos mecanismos centrais das construções sociais mais poderosas como é o caso da cultura patriarcal.
Assim, ao invés de interpretar a prática do “listão” como parte da tradição institucional, caberia à escola compreender essa situação como analisadora de um contexto em que meninos e meninas continuam a ser colocados em uma camisa de força do gênero. Como o machismo se manifesta sobretudo nos comportamentos cotidianos, a chance concreta para sua problematização está aí, diante de todos.
Como desaprender os estereótipos? Como identificar e superar as injustiças de gênero? Como desenvolver a empatia entre meninos e meninas dentro de uma rede de relações? Estas podem ser questões um tanto estranhas em um cenário escolar em que a educação está cada vez mais voltada para o mercado de trabalho e menos para a convivência. Contudo, a escola sempre foi um dos ambientes mais eficazes para promover o respeito e, por isso, não pode se furtar do debate de gênero, mesmo que na votação do Plano Nacional de Educação (PNE) o termo tenha sido retirado das diretrizes.
Assim sendo, o que as mobilizações das meninas em 2016 e 2019 parecem demonstrar é que essa decisão de supressão do tema foi equivocada e que a legislação não consegue conter a força das demandas da própria existência e das mutações culturais em curso. Bem-vindas as novas gerações de mulheres na luta pela igualdade de direitos!