OPINIÃO

Coisa mais linda

Por Marcos Rolim / Publicado em 24 de abril de 2019

Foto: divulgação Netflix

Foto: divulgação Netflix

A série Coisa mais linda, lançada recentemente pela Netflix, dirigida por Heather Roth e Giuliano Cedroni, deveria ser exibida em sala de aula em todo o país. O argumento, sustentado por grandes atuações das quatro protagonistas, Malu (Maria Casadavell), Adélia (Patrícia Dejesus), Lígia (Fernanda Vasconcellos) e Tereza (Mel Lisboa), permite que a estrutura hierárquica de gênero vigente em 1959 no Brasil seja exposta de tal modo que não há como ignorar a opressão. Detalhe importante: várias das frases ditas pelas personagens foram tiradas de posts recentes nas redes sociais. O machismo que vemos na tela, de qualquer maneira, convoca cada um de nós a pensar na realidade de feminicídios, crimes sexuais, preconceitos, ameaças e assédios que seguem atormentando o cotidiano das mulheres brasileiras em pleno século 21.

Coisa mais linda aborda, ainda, com maestria, o tema do racismo, evidenciando aquela que é outra das fraturas que caracterizam nossa formação econômica e social. Lá estão as relações abusivas e humilhantes sustentadas pelos patrões diante de suas empregadas (negras quase sempre) e muito mais. Tudo isso em produção esmerada, belíssima fotografia e boa trilha sonora. Como bônus, a série ainda oferece algumas “citações”, como a cena em que políticos do Rio, quando a cidade ainda era capital do Brasil, se divertem em um restaurante com guardanapos na cabeça – o que remete a episódio real de Sérgio Cabral e seu bando.

Há, entretanto, outras razões que fazem a série ser mais significativa nesse momento sombrio de nossa história. Ocorre que o Brasil e várias outras nações experimentam, atualmente, governos ou movimentos políticos com vocação protofascista que valorizam os padrões tradicionais das sociedades patriarcais, onde os papéis de gênero são claramente definidos em termos binários e hierárquicos, com os homens como provedores, no espaço público, e as mulheres, como mães, cuidando das crianças, no espaço privado.

Na Hungria, o governo de Viktor Orbán combate o que chama de “doutrinação liberal” e sustenta uma plataforma nacionalista que se articula com a proteção do casamento, compreendido como “união sagrada entre homem e mulher”, no incentivo à maternidade e na proibição do aborto. Na Polônia, o Partido da Lei e da Justiça, de extrema-direita, sustenta política anti-imigração, abomina a homossexualidade e propõe que o aborto seja proibido inclusive nos casos de estupro e risco de vida para a gestante.

Discursos semelhantes marcam as intervenções de Matteo Salvini, na Itália, e de Marine Le Pen, na França, e as propostas de movimentos neofascistas em países tão diversos como a Alemanha, onde o Alternativ Für Deutchland já é a terceira força política, e a Índia onde a ideologia do movimento Hindutva foi assumida pelo partido dominante. O feminismo e a luta pelos direitos civis dos gays constituem alvos permanentes de Putin, na Rússia, que, além da repressão aos ativistas, força as universidades para que abandonem os “valores ocidentais”. O mesmo ocorre na Turquia, onde Erdogan demitiu mais de 5 mil professores e reitores sob a acusação de serem “liberais” e “esquerdistas”.

No Brasil, o “programa” do governo para a Educação começa com o hino nacional nas escolas, com as invectivas contra a “ideologia de gênero” e contra os professores apontados como “comunistas” e termina na Educação a Distância e na proposta do homeschooling (veja meu texto a respeito). Já a ministra da Mulher, pastora Damares, promove palestras contra o feminismo e declara que sua missão é ensinar os meninos a serem gentis com as meninas; os primeiros de azul, as últimas de rosa.

As tentativas de disciplina sobre os corpos femininos e de enquadramento heteronormativo da sexualidade é também uma fixação dos novos cavaleiros “da moral e dos bons costumes”; o que não é novidade em termos de política fascista. Depois de ter inventado que Obama não seria americano, Trump alimentou várias “teorias conspiratórias” em sua campanha. Uma das mais populares ficou conhecida como pizzagate e consistiu na lenda de que um dos coordenadores da campanha de Hillary Clinton agenciava prostitutas para congressistas democratas, operando em uma pizzaria. No Brasil, um dos temas mais batidos pela campanha de Bolsonaro envolveu o Kit Gay, algo que nunca existiu. Essa foi a lenda pública, reforçada por outras lendas que aglutinaram ódio e repulsa em grupos de WhatsApp.

Em uma delas, se acusava Haddad de haver distribuído mamadeiras com bicos em formato de pênis para crianças nas escolas de São Paulo, como forma de combater a homofobia. Incrivelmente, milhões de pessoas acreditaram nessa asneira. Em ambas as lendas, o bolsonarismo especulou com os preconceitos ancestrais contra as sexualidades “desviantes e pecaminosas” em um estilo que nem a Inquisição seria capaz de sustentar. A homofobia e a misoginia, entretanto, não foram apenas artifícios de campanha. Seguem sendo, mais do que isso, compromissos essenciais para o tipo de discurso manipulador que caracteriza todas as intervenções do clã Bolsonaro e da fração lisérgica de seu ministério.

É esse pesadelo que confere à série Coisa mais linda um sentido subversivo e civilizatório. Uma boa notícia, enfim, no meio de tantas tragédias.

* Marcos Rolim é Doutor em Sociologia e jornalista. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe

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