Palavra de Professor: Bacurau!
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Aquilo que Kléber Mendonça colocou na tela em Bacurau não é simplesmente um filme. Não remete simplesmente ao Cinema Novo na música de Sergio Ricardo. Ele traz no seu âmago a revolta engasgada desde 2016. Mas também não é mais o golpe que importa, identificado no prédio sabotado lá atrás em Aquarius. Nos acorda do adormecimento e da letargia mórbida que aflora pelo país até a alma em sua existência. Ele dá nome aos bois que esfolam a carne humana brasileira até o osso, na alegoria de cortar ao povo os recursos de sobrevivência, a água, a luz, a comunicação que remete a toda a barbárie instaurada no país na entrega dos recursos minerais, energéticos, aquíferos naturais, a destruição das empresas estatais, dos direitos do trabalhador, da mulher, dos negros, das minorias, da saúde, da educação, a destruição do Estado e sua privatização simbolizada no prefeito cúmplice e parceiro dos interesses norte-americanos.
A eficiência tecnológica do mundo digital e seu poder de manipulação são a falta de pudor assassino do invasor imperialista, e que se encontra tanto no drone em forma de disco voador, que pensa enganar o povo crente e inculto, quanto na cena que é invadida pela excitação do casal armado após o assassinato de inocentes. A falta de pudor em matar friamente uma criança criticada por um deles nos aproxima daquilo que está sendo executado como política pública e que é corroborada pela classe média e pela mídia brasileira.
Western e cangaço, aproxima o espectador do problema verdadeiro do lento assassinato em massa de milhões de desempregados sem escola e assistência médica. Atua na representação como animalidade instintiva, popular, como o cinema de Glauber teria feito hoje, daí o resgate emocionante das músicas de Sergio Ricardo, que cruzam passado e presente, 1969 e 2019 como um só lugar, lugar de luta, de tomar de volta, a ferro e fogo, a dignidade roubada.
E o filme invoca esse passado do cabra macho e da mulher macho, do negro de corpo nu, e não deixará barato a tentativa de esfolar a pele do povo brasileiro pelo invasor imperialista. Cortará assim suas cabeças e as exibirá no chão, em público, como fizeram naquele tempo com o bando de Lampião. Um troco no tempo e no espaço. Aos traidores, a morte lenta, a do prefeito engomado, meio Aécio, meio Dória, amarrado e vendado em cima do lombo de burro, e ao perverso líder alemão nazista americanizado, dois lados da mesma moeda, enterrado vivo na escuridão de seu próprio túmulo. Ao esforço monumental de construir um país mais justo frustrado novamente por traidores históricos, o único remédio é a raiva.
*Arquiteto e urbanista (PUCSP, 1987), Mestre em Artes (Unesp, 2003), Doutorando em Cinema no PPG em Meios e Processos Audiovisuais da USP/ História, Teoria e Crítica com “Os Superoutros: corpos em movimento no cinema superoitista dos anos 1970 no Brasil”