OPINIÃO

A explosão

Por Marcos Rolim / Publicado em 6 de novembro de 2019

Foto: Reprodução

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“Nesse particular, a explosão chilena parece mostrar os riscos de fenômeno semelhante ocorrer no Brasil. Somos mais desiguais que o Chile; nossos serviços públicos seguem se degradando e a violência já é uma constante há muitos anos.”

Sociedades injustas, às vezes, explodem. Momentos assim são preparados por anos de dificuldades e humilhações. Quando reformas são realizadas ou quando uma alternativa política dissemina esperança, o processo é detido ou mesmo desativado, mas, sem isso, basta uma fagulha para que o paiol vá pelos ares. No Chile, essa fagulha foi o reajuste nas tarifas do metrô.

Inicialmente, os secundaristas – com forte protagonismo das meninas – pularam as catracas. Outros usuários os seguiram. Houve forte repressão e o movimento tomou as ruas. Embora tenha revogado o aumento das tarifas, o presidente Sebastián Piñera apostou suas fichas na repressão, mobilizando os militares e impondo o toque de recolher.

Milhares de pessoas foram presas, há relatos de abusos sexuais e manifestantes foram torturados e mortos. Como costuma ocorrer nessas dinâmicas, a violência se ampliou. Estações de metrô foram incendiadas, carros, prédios e estabelecimentos foram destruídos, entre eles a sede da Enel, empresa de energia elétrica, e o Banco do Chile.

Os saques se multiplicaram, envolvendo até membros das forças de segurança. Veja policiais saqueando uma loja em Santiago:

Nesse momento, o presidente afirmou: “Estamos em guerra contra um inimigo poderoso, que está disposto a usar a violência sem limites”.

Na base do descontentamento da população, há um modelo econômico que privatizou saúde, educação, transporte, moradia, água, luz e energia, oferecendo serviços cada vez menos acessíveis. Na área da Saúde, por exemplo, apenas 15% dos chilenos têm, de fato, acesso a serviços de qualidade. Há também um modelo de Previdência Social, apontado como modelo pelos “liberais” brasileiros, que paga proventos miseráveis aos beneficiários, o que agrega novas dificuldades às famílias que precisam amparar economicamente seus idosos.

Há, também, antigas reivindicações por justiça e autonomia, como aquelas do povo Mapuche, cujas bandeiras são erguidas nas manifestações (veja uma delas no alto da foto icônica que acompanha esse texto), enquanto, não por acaso, estátuas de colonizadores espanhóis são derrubadas festivamente.

O tema da desigualdade é central para se entender explosões sociais. A América Latina é uma região pobre e que compete com o continente africano quando se trata de desigualdade. O Brasil, como se sabe, é um dos países mais desiguais no mundo.

Dados do estudo A Escalada da Desigualdade, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), mostram que a desigualdade social vem crescendo no Brasil nos últimos cinco anos. Desde 2014, os mais pobres reduziram sua renda em 17,1%. As camadas intermediárias tiveram perdas de 4,16%, enquanto os 1% mais ricos aumentaram sua renda em 10,11%.

Nesse particular, a explosão chilena parece mostrar os riscos de fenômeno semelhante ocorrer no Brasil. Somos mais desiguais que o Chile; nossos serviços públicos seguem se degradando e a violência já é uma constante há muitos anos. Em 2013, milhões de pessoas foram às ruas manifestar seu descontentamento. Na época, a maior parte da esquerda brasileira que, agora, exalta a mobilização dos chilenos, olhou para as jornadas de julho com um misto de espanto e medo.

Não faltou quem acusasse as mobilizações de fascistas ou quem afirmasse que elas haviam sido articuladas pela CIA. A propósito, edição recente de Carta Capital trouxe em sua capa a foto de um jovem chileno mascarado, com um pedaço de pau e a manchete: “O povo nas ruas – menos no Brasil”. Em sua edição nº 760, de 7 de agosto de 2013, entretanto, quando o povo saiu às ruas no Brasil, como nunca antes, a capa da revista também trouxe a foto de um jovem mascarado, mas o título era: Black Blocs, depredação nas ruas.  Perto do que está ocorrendo no Chile agora, aquelas mobilizações foram tímidas e pouco consistentes, mas podem ter sido apenas um ensaio.

De lá para cá, as coisas têm se agravado muito. O país acaba de aprovar uma perversa Reforma da Previdência cuja conta será paga basicamente pelos mais pobres; tragédias se sucedem sem que qualquer delas, das queimadas na Amazônia ao desastre ambiental do óleo nas praias do Nordeste, receba a devida resposta do governo federal. Estamos à deriva, carentes de um projeto nacional e sem uma alternativa política real.

O mundo da política se move em torno das mesmas narrativas e objetivos menores, o que permite que interesses escusos avancem para assegurar impunidade aos corruptos e novos privilégios. Enquanto isso, na presidência, há uma figura tenebrosa, cuja ignorância se funde com uma disposição incansável pela violência. Uma receita, enfim, propícia a explosões de toda ordem.

No Brasil, vale lembrar, uma explosão marcada por atos de violência poderá constituir cenário propício a aventuras golpistas. Não deixa de ser preocupante, aliás, que a figura mortífera do Planalto tenha, ainda, 30% de aceitação. Mantida essa base, ele terá o patamar necessário para a mobilização em torno de medidas de exceção caso o paiol comece a arder.

 

* Marcos Rolim é Doutor em Sociologia e jornalista. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe

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