Foto: Reprodução/CNN Brasil
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Há um crime no Brasil, com todas as suas conexões, à espera de abordagem, não só pelo distante Tribunal Internacional de Haia, mas pelo Ministério Público e pelo Judiciário que estão aqui ao nosso lado.
A disseminação da cloroquina como droga milagrosa, tendo o presidente da República como propagandista, expõe em meio à pandemia a incapacidade de reação das instituições.
Se uma pessoa comum, desprovida de qualquer proteção como figura pública, fizesse abertamente a mesma pregação, com um tom deliberado de charlatanismo, a polícia, o Ministério Público e o Judiciário seriam acionados.
Mas Bolsonaro pode. Os militares que se apoderaram do Ministério da Saúde também podem. Podem os governadores, os prefeitos e os médicos que se encarregaram de levar adiante a ideia de Bolsonaro. Mas será que podem tudo?
Faltam remédios básicos nas UTIs dos hospitais da rede pública. E sobram mais de 5 milhões de comprimidos de cloroquina nos estoques do Exército. Distribuem cloroquina para índios, como se distribuíssem cibalena. Amplia-se o lobby político para que os médicos receitem o remédio de Bolsonaro.
Pesquisa da Associação Paulista de Medicina denuncia que 48,9% de 2 mil profissionais entrevistados em todo o país relataram pressões de pacientes ou parentes para prescrever a cloroquina e outros remédios sem comprovação científica.
Bolsonaro pressiona os deputados, que pressionam os prefeitos, que pressionam os vereadores. E o médico é convidado a participar da rede de distribuição, em nome de uma estranha autonomia.
As famílias são convencidas de que não há salvação sem a cloroquina e se configura o que o Estadão, o mais conservador dos grandes jornais brasileiros, aborda em editorial como a rede do charlatanismo.
A médica intensivista Bruna Lordão, citada no editorial, sintetiza o que acontece hoje no ambiente hospitalar da rede pública: “As pessoas não querem saber de pesquisa científica, só do que o Bolsonaro tomou”.
O remédio de Bolsonaro passa a ser usado, não como último recurso, mas desde os primeiros sintomas. A estratégia é enfiar goela abaixo os estoques encalhados de cloroquina.
A desinformação e o desespero abrem as portas para a pregação bolsonarista. Bolsonaro consagra-se como feiticeiro.
Um levantamento improvável, porque seria de fato quase impossível, revelaria que a cloroquina é a droga dos pobres e dos negros. Não encontrarão cloroquina em quantidade nos hospitais e nas clínicas-hotéis dos ricos.
Os cientistas mostram que são singelos, mas ingênuos, os depoimentos avulsos de médicos que dizem ter salvo pacientes com o uso da cloroquina. Baseiam-se em pessoas que escaparam dos danos da Covid-19 e do próprio remédio. Se escaparam da morte, foram salvas pela
droga?
Temos em pleno século 21 a conversa de pajés da medicina do século 19, como se a ciência pudesse voltar a conviver com mágicas e alquimias pré-penicilina.
A cloroquina, repete a ciência, não vai nos salvar da pandemia, nem amenizar as sequelas da doença. É o que está nos experimentos, e não em casos avulsos. Exemplos soltos são exemplos soltos, não comprovam nada. Esse é um debate vencido.
Tanto que na semana passada foi divulgada a decisão da Sociedade Brasileira de Infectologia de não recomendar o uso da cloroquina contra Covid-19. E logo depois houve a reação da Associação Médica Brasileira em direção contrária.
Manifestou-se o lobby poderoso dos médicos que usam a AMB como trincheira, com o discurso de que os profissionais têm autonomia para receitar o que bem entendem. Os médicos querem ter essa autoridade a qualquer custo.
Pois os dados a seguir são do próprio Ministério da Saúde: a taxa de cura de pacientes doentes na rede privada de hospitais é 59% maior do que na rede pública.
Em média, metade dos pacientes de hospitais privados consegue sobreviver à Covid-19. Na rede pública, apenas um terço sai vivo dos hospitais. Mas como, se a cloroquina é quase imposta como salvação aos médicos e pacientes da rede pública?
O que se sabe, por obviedade, é que na rede pública faltam remédios, vagas, pessoal e todo tipo de suporte, principalmente nas UTIs. O que mata é a carência estrutural do bravo SUS, agravada pelo descaso criminoso do governo com a pandemia.
Segundo o Tribunal de Contas da União, o governo aplicou até agora somente 29% dos R$ 38,9 bilhões destinados, lá em marco, em orçamento específico, para o combate ao coronavírus.
A imposição da cloroquina é o truque para que sejam camufladas as deficiências e a gestão errática da saúde pública, enquanto os ministros entram e saem. O recado é este: tomem cloroquina e tentem se salvar, porque Bolsonaro conseguiu.
Nos Estados Unidos, o Twitter suspendeu a conta de Donald Trump Jr., filho do presidente, por fazer propaganda da hidroxicloroquina como remédio que combate a Covid-19. O Twitter tomou a decisão orientado por cientistas.
No Brasil, nada acontece, e o que se tem é o cenário de propagação do embuste por Bolsonaro. O Ministério Público não pode agir, mesmo que, sendo essa uma área sob proteção dos generais, não dê em nada? Não pode tentar?
A reação ao crime da cloroquina, que enriquece os laboratórios privados, não pode ficar só na zombaria dos que riem das fotos de Bolsonaro oferecendo o remédio às emas do Alvorada.
*Moisés Mendes é jornalista. Escreve quinzenalmente para o jornal Extra Classe.