Estudantes sem internet e sem livros: recursos existem
Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil
Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil
“Você quer armas? Estamos em uma biblioteca! Livros!
As melhores armas do mundo!” (Doctor Who)
No art. 208 da Constituição Federal está expresso que a educação básica é obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria. Portanto, para viabilizar o acesso ao direito à educação, especialmente em tempos de pandemia, o acesso a meios e tecnologias de informação e comunicação (internet) e bibliotecas digitais, é necessidade elementar a ser provida pelo Estado.
É incompreensível que transcorridos seis meses de aulas presenciais suspensas, governos, gestores e mantenedoras de ensino estejam mais preocupadas com protocolos de retorno às aulas do que viabilizar aos estudantes acesso gratuito à internet de banda larga e bibliotecas digitais, a exemplo do que já existe em vários países.
R$ 197,4 milhões para o Programa Educação Conectada
Recursos existem! No orçamento do MEC para 2020 está alocado R$ 197,4 milhões para o Programa Educação Conectada, mas nenhuma percentagem deste valor foi empenhada para prover internet aos estudantes. O próprio ministério poderia realocar outra verba de R$ 860,9 milhões prevista para a reforma do “novo” ensino médio, também não utilizado e, assim, já teríamos em torno de R$ 1 bilhão para atender os estudantes com dificuldade de estudar em tempos de ensino predominantemente virtual.
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Recentemente, ao sancionar a Lei º 14.040, de 18 de agosto de 2020, o presidente vetou quatro dispositivos que previam a União prestar assistência técnica e financeira aos entes federados para a oferta de aulas e atividades pedagógicas a distância, enquanto as escolas permanecem fechadas, e para implementar as medidas sanitárias necessárias para o retorno das aulas presenciais. Foi vetado, inclusive, trecho que autorizava a distribuição de alimentos adquiridos com recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
O Brasil tem 14,9 milhões de lares sem acesso à internet. São quase 46 milhões de pessoas desconectadas — um quarto da população com mais de 10 anos de idade. Desse contingente de excluídos digitais, 7,5% não têm sinal disponível, 25,4% não podem pagar pelo serviço e 24,3% não sabem usar a rede mundial de computadores. Os dados são da Pnad-Contínua, divulgada em abril, pelo IBGE.
40% de estudantes estão sem internet
É verdade que o acesso a rede de computadores cresce no Brasil a cada ano. Porém, alguns indicadores apontam desequilíbrios territoriais na distribuição dos acessos. De acordo com o IBGE, enquanto a utilização da internet em áreas urbanas atinge 83,8% dos lares, menos da metade dos domicílios rurais (49,2%) está “logada”. A mesma disparidade se verifica quando se comparam as regiões do país.
De acordo com a média nacional, 75,9% dos lares com internet utilizam banda larga fixa. Na região norte, são apenas 53,4%. Na pesquisa Pnad Contínua TIC analisando domicílios que em que não havia internet, 30,6% alegavam que o serviço é muito caro e 39,3% diziam não ter interesse acessar a internet. Em síntese, cerca de 40% de estudantes estão sem internet para estudar com ou sem pandemia.
Desigualdade tecnológica
Outra pesquisa TIC Domicílios 2019, conduzida pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, evidencia e reforça a desigualdade tecnológica das camadas mais pobres da sociedade. Cerca de 39% dos lares não tem acesso a internet. Nas classes A e B, mais de 90% da população com mais de 10 anos de idade acessa a rede mundial de computadores. Nas classes D e E, a proporção é de 57%. Enquanto as classes A (87%) e B (73%) conectam-se à internet simultaneamente por computadores e celulares, apenas 38% da classe C e 14% da D e da E utilizam ambos os dispositivos.
No entanto, há exatos 20 anos, em agosto de 2000, era sancionada uma lei que prometia revolucionar o acesso à informação no Brasil. A Lei 9.998, de 2000, cria o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) e obriga todas as empresas do setor a destinar 1% da receita operacional bruta à expansão do serviço — especialmente, nas regiões consideradas não-lucrativas. Passadas duas décadas, o Fust arrecadou mais de R$ 22,6 bilhões, de acordo com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Porém, apenas uma parcela irrisória do dinheiro foi aplicada para atenuar o abismo digital que isola parte da população.
Foto: Fernanda Carvalho/Fotos Públicas
Foto: Fernanda Carvalho/Fotos Públicas
Entre os objetivos atuais do Fust se destacam, entre outros: implementar acessos individuais para prestação de serviço telefônico e internet em estabelecimentos de ensino, bibliotecas e instituições de saúde; reduzir o valor da conta dos serviços de telecomunicações em escolas e bibliotecas públicas para beneficiar a população carente; instalar redes de alta velocidade para serviços de teleconferência entre escolas e bibliotecas; implementar telefonia rural e serviços de telecomunicações em unidades do serviço público.
Descompasso
Outro indicador que evidencia a baixa eficácia do fundo é a própria execução dos recursos. O Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu em 2016 uma fiscalização sobre a infraestrutura de telecomunicações do Brasil. Um dos pontos mais explorados pelo relator, ministro Bruno Dantas, foi justamente a utilização do dinheiro do Fust e do Fistel (Fundo de Fiscalização das Telecomunicações). O ministro apontou e alertou para “o descompasso entre o volume arrecadado e a aplicação dos recursos nos objetivos que motivaram a criação” dos dois fundos.
Os dados são alarmantes. De acordo com o TCU, dos R$ 16,05 bilhões recolhidos pelo Fust entre 2001 e 2015, apenas 1,2% foi utilizado na universalização dos serviços de telecomunicações. Nada menos que 69,39% da arrecadação foi empregada “em outros fins”, como remuneração de instituições financeiras, auxílio-transporte para servidores do Ministério das Comunicações, bem como, a assistência médica, odontológica e pré-escolar, inclusive para dependentes dos mesmos.
Apesar do aporte de R$ 22,6 bilhões ao longo dos últimos 20 anos, os saques na conta do Fust para outras finalidades reduziram o superávit financeiro do fundo a R$ 5,6 bilhões, em 2019. O portal Siga Brasil, mantido pelo Senado, agrega informações sobre a execução do Fust nos últimos seis anos. Embora os dados relativos à arrecadação do fundo divirjam dos números apresentados pela Anatel, o levantamento expõe uma realidade desoladora: de R$ 9,1 bilhões autorizados entre janeiro de 2015 e julho de 2020, só foram efetivamente pagos R$ 573,2 mil — o equivalente a 0,006%.
Pandemia
Neste período de pandemia, tramitam no Senado federal propostas de aperfeiçoamento do Fust e ações imediatas para atender as novas necessidades, postas pelo covid-19. Os recursos do Fust devem ser utilizados para viabilizar a implantação de novas tecnologias que possam proporcionar a conectividade no campo e na periferia onde estão as famílias e estudantes de baixa renda. Há, também, a previsão de, até 2024, investir em maior conectividade nas escolas públicas, conforme divulgado pela Agência do Senado.
Se não bastasse a inoperância total do MEC em liderar e liberar recursos extras para emergências educacionais decorrentes da crise sanitária, o ministério da educação anuncia mais uma redução de R$ 4.1 bilhões no orçamento da educação para 2021. Enquanto isto, o governo federal planeja reservar R$ 5,8 bilhões a mais do orçamento, em 2021, para despesas militares. A previsão é que a Defesa tenha um acréscimo de 48,8% em relação ao orçamento de 2020, indo de R$ 73 bilhões para R$ 108,56 bilhões no próximo ano. Já a Educação deve ter uma queda, passando de R$ 103,1 bilhões para R$ 102,9 bilhões, no ano que vem.
A Pnad da Educação 2019 publicada em julho deste ano é estarrecedora. Apesar de estarmos em “guerra” contra o covid-19 e contra a ignorância, o governo Bolsonaro prioriza elevar as despesas com as forças armadas em detrimento de investimentos nas páreas da saúde e educação. Há contradição e aberração maior? Naturalmente que não. O desmonte da educação pública é evidente. Ataques sistemáticos e ausência de políticas públicas para a ciência, educação e cultura, indicam a radicalização do modelo neoliberal de privatização de tudo e o desmonte da esfera pública estatal brasileira.
Tributação de livros
Foto: Asscom IOE - Ananindeuá-Pará/Fotos Públicas
Foto: Asscom IOE - Ananindeuá-Pará/Fotos Públicas
A isenção tributária de livros no Brasil data da Constituição de 1946, quando Jorge Amado, deputado constituinte, apresentou a proposta, que foi mantida na Constituição 1988.
Dizia Mário Quintana: “Livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas”. Portanto, sem acesso a livros, não transformaremos a mentalidade dos brasileiros que, por sua vez, não construirão um país mais justo e igualitário. Este e, infelizmente, um projeto histórico das elites brasileiras que se perpetua.