OPINIÃO

O dilema das redes e a era do governamento digital

Os impactos da interação tecnológica sobre a educação são os mais variados e têm divido a opinião dos docentes
Por José Luís Ferraro* / Publicado em 16 de outubro de 2020
Tristan Harris, ex-programador do Google, em "The Social Dilemma": "se você não paga pelo produto, você é o produto"

Foto: Exposure Labs/Netflix

Tristan Harris (E), ex-programador do Google, em “The Social Dilemma”: “se você não paga pelo produto, você é o produto”

Foto: Exposure Labs/Netflix

Um dos documentários mais recomendados, O Dilema das Redes (The Social Dilemma), disponível na Netflix, aborda as tecnologias relacionadas à inteligência artificial por trás das redes sociais e seus efeitos sobre o comportamento humano. A relação entre a maneira como interagimos nas redes e os algoritmos criados a partir dos modos como essa interação ocorre não apenas revela um perfil detalhado sobre nós mesmos – nossos gostos, preferências e interesses –, como ajuda a consolidá-lo, tornando-o cada vez mais inteligente no design de padrões e modelos de tendências sobre nossa experiência como usuários das redes.

Da sociedade disciplinar à sociedade de controle, até as micropolíticas que tendem a produzir uma economia do desejo e dos afetos no interior de uma política específica da verdade, intelectuais como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari já mostravam os entrelaçamentos entre poder, saber e verdade, os investimentos do campo social sobre as subjetividades, a produção capitalística e suas máquinas desejantes.

O que muda? A forma de governamento. Tais elementos se mantêm, mas os dispositivos agora são outros, de natureza digital. São as redes sociais que capitalizam estes processos que interferem sobre os modos de ser, agir e pensar – de estar no mundo – com a anuência de seus próprios usuários, que numa relação de adesão cedem seus dados, fornecem suas informações, e se tornam o alvo fácil para um governamento digital. E não é preciso que se diga que os efeitos disso sobre a educação são os mais variados e têm divido a opinião dos docentes.

Estratégias de gamificação na educação, ambientes virtuais de aprendizagem com controle de acesso de estudantes ou redes sociais voltadas especificamente a atividades de pesquisadores, por exemplo – sob uma lógica crítica –, nada mais são do que dispositivos de governamento digital que visam garantir o engajamento em termos de produtividade. Se por um lado elas facilitam modos de interação em suas respectivas áreas, por outro produzem uma série de tendências que informam sobre a atividade de quem as utiliza. No caso dos pesquisadores, produzem índices de reputação: quantas vezes foi lido, quantas vezes foi citado, em quais revistas publica. Tornam-se vitrines onde se expõe um capital simbólico – neste caso, cultural, científico e social – que muitas vezes serve como combustível para a fogueira de vaidades na academia. Pierre Bourdieu nunca fez tanto sentido.

Embora na contemporaneidade não haja perspectiva para um rompimento dessa relação de governamento, pois o uso das redes sociais contribui para uma série de relações que extrapolam a dimensão pessoal, estendendo-se também à profissional, é possível mitigar a dependência que temos desenvolvido em relação a elas. Tal prática como contraconduta em resposta à governamentalidade digital se coloca como um imperativo à preservação de nossa própria humanidade, não apenas pelo momento pandêmico – que, forçosamente, nos jogou no interior de uma dimensão virtual na escola, no trabalho e até mesmo no âmbito das relações familiares –, mas pela necessidade da convivência com o outro na esfera do real; onde devimos aquilo que realmente somos, livres dos algoritmos que direcionam nossas escolhas ou dos filtros que nos ajudem a caçar curtidas para satisfazer nossa natureza egóica. Humanos, apenas.

*Doutor em Educação e professor dos Programas de Pós-Graduação em Educação e Educação em Ciências e Matemática da PUCRS.

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