OPINIÃO

Saúde e pseudoalimento

Por Marcos Rolim / Publicado em 15 de outubro de 2020
Além dos danos à saúde, a indústria da pseudocomida acarreta forte impacto ambiental

Foto: Visualhunt.com

Além dos danos à saúde, a indústria da pseudocomida acarreta forte impacto ambiental

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Em 2014, o Ministério da Saúde lançou a segunda edição do Guia alimentar para a população brasileira. O estudo sintetizou as evidências científicas a respeito da alimentação e seus efeitos na saúde humana, na cultura e no meio ambiente, contando com a participação do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (USP). O trabalho foi também aberto à consulta pública, o que viabilizou ampla participação e um debate qualificado. Desde seu lançamento, o Guia tornou-se uma referência internacional, tendo merecido avaliações altamente positivas e influenciado políticas públicas em outros países.

Uma das novidades do Guia foi a classificação dos alimentos em quatro tipos: I) alimentos in natura ou minimamente processados, II) produtos extraídos de alimentos in natura ou diretamente da natureza usados para temperar e cozinhar; III) produtos fabricados essencialmente com a adição de sal ou açúcar a um alimento in natura ou minimamente processado e IV) produtos cuja fabricação envolve diversas etapas e técnicas de processamento e vários ingredientes, muitos deles de uso exclusivamente industrial. Nessa tipologia, o Guia demonstrou o quanto uma dieta saudável depende do consumo de produtos in natura (como folhas, frutas, ovos e leite) ou minimamente processados (como grãos secos, polidos ou moídos como farinhas, raízes e tubérculos lavados, cortes de carne resfriados ou congelados e leite pasteurizado).

As informações científicas do Guia dizem respeito a um desafio fundamental de educação alimentar e nutricional em um país onde sobrepeso e obesidade, características fortemente associadas a doenças cardíacas, diabetes e a certos tipos de câncer, acometem um em cada dois adultos e uma em cada três crianças. Corremos, nesse ponto, o risco de repetir a trajetória dos Estados Unidos, com o consumo crescente de fast food e de produtos ultraprocessados lançados no mercado com forte apelo publicitário.

Essa mudança no padrão alimentar troca produtos de origem vegetal como arroz, feijão, mandioca, batata, legumes e verduras, por produtos industrializados que adicionam gordura vegetal hidrogenada, óleos interesterificados, xarope de frutose, isolados proteicos, agentes de massa, espessantes, emulsificantes, corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e vários outros tipos de aditivos químicos.

Esses produtos permitem o consumo durante o trabalho, no carro, ou em frente à TV, práticas que alteram a experiência de refeições compartilhadas à mesa e as quantidades consumidas. Assim, guloseimas, refrigerantes, sucos e sopas em pó, produtos congelados “prontos para aquecer”, misturas para bolos, “macarrão” instantâneo e “temperos” prontos, pizzas, hambúrgueres, salsichas e extratos de carne, de frango ou peixe, mais bolachinhas e salgadinhos de pacote, cereais matinais, barras de cereal, bebidas energéticas, entre uma  infinidade de outros produtos que imitam comida, se integraram ao cotidiano da população e à dieta das crianças. O processo envolve pães com gordura vegetal hidrogenada, açúcar, amido, soro de leite, emulsificantes e outros aditivos e está presente em produtos anunciados como “diet” ou como “enriquecidos com vitaminas”.

Além dos danos à saúde, a indústria da pseudocomida acarreta forte impacto ambiental. A escala de produção dos ultraprocessados exige grandes extensões de terra com monocultura (para matéria-prima e rações), fertilizantes sintéticos, sementes transgênicas, controle químico de pragas e doenças, criação intensiva de animais, uso de antibióticos e extraordinário consumo de água. Como esse sistema pressupõe grandes distâncias entre os centros de produção e o consumidor final, exige pesado consumo de combustíveis, de embalagens não biodegradáveis que já ameaçam o planeta e de mais gorduras que resistem à oxidação e que são ótimas para obstruir nossas artérias.

O Guia alimentar para a população brasileira, claro, entrou na alça de mira do governo Bolsonaro. Recentemente, atendendo a pedido da ministra Tereza Cristina, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) produziu nota técnica propondo “urgente revisão” no Guia, notadamente quanto à orientação para que “sejam evitados alimentos ultraprocessados”. A nota afirma que o Guia brasileiro é “um dos piores do mundo” (sic).

A Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) endossou a posição do Mapa, oferecendo uma referência para amparar a afirmação do Ministério que desqualificou o Guia. Para a associação, um estudo publicado no British Medical Journal, de vários pesquisadores, entre eles Marco Springmann (Oxford) e Anna Herforth, (Harvard), teria situado o Guia brasileiro em 86º lugar em uma lista de 97 documentos similares em todo o mundo.

Na verdade, o artigo fez uma classificação a respeito de recomendações quantitativas de produtos alimentares, o que não foi objeto do Guia brasileiro. A manipulação da referência fez com que os Springmann e Herforth lançassem uma nota manifestando sua indignação com a postura da Abia.

Poderosos interesses econômicos sempre tiveram muita influência política e os governantes no Brasil sempre foram especialmente sensíveis às necessidades dos mais ricos. O que mudou, agora, no governo federal, é que as empresas não pressionam mais, elas governam por seus prepostos. A rigor, não temos ministros, mas representes das grandes empresas. Cada um com uma “boiada” para passar….

Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.

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