OPINIÃO

O mundo de Pepê não existe mais

Por Moisés Mendes / Publicado em 23 de dezembro de 2020

O mundo de Pepê não existe mais

Foto: Reprodução/Barraca do Pepê e redes sociais/Divulgação

Foto: Reprodução/Barraca do Pepê e redes sociais/Divulgação

Um ano com as feições de 2020 é para ser triturado e jogado fora, para que nunca mais se repita algo parecido. 2020 amplificou horrores em todas as áreas e nos empurrou para uma realidade que só contemplou os interesses da extrema direita.

Perdemos muito em 2020 e temos a sensação de que algumas coisas foram perdidas para sempre. Não precisa repetir que foi o ano da exaltação do fascismo no poder, da destruição da Amazônia, do feminicídio, do racismo, das fake news, do negacionismo.

Foi o ano em que perdemos ilusões aparentemente singelas. Como a de que certos ambientes ainda preservavam o sentimento dos sonhos e das utopias coletivas imunes ao avanço do atraso.

O reacionarismo espalhou-se para muito além da política formal de representação, dos partidos e das instituições diversas. Entre as descobertas devastadoras do Brasil bolsonarista está a de que aqui, como em qualquer parte, até o mundo do surfe perdeu sua alma e tem hoje a hegemonia dos ‘valores’ da direita.

Brancos, bonitos, bem-nascidos e discriminadores já eram dominantes nesse mundo. Agora, eles são impositivos. O surfe brasileiro, renovado pelos pobres suburbanos que viraram campões mundiais, é cada vez mais reaça.

Esse parece, mas não é um assunto só para surfistas, porque tem força simbólica que vale para qualquer área. Entender o que se passa nesses espaços de convivência pelo esporte é compreender muito de todo o resto.

O surfe das liberdades é agora discriminador e especialmente homofóbico, porque seria cada vez mais um esporte de machos. É um estrago na imagem de uma atividade considerada transgressora e libertadora.

Talvez não tenha sobrado mais nada do surfe dos cabeludos dos anos 70 e 80, da turma do Pepê, o carioca que deu ao surfe as feições que muitos ainda imaginam que tenha.

Pedro Paulo Guise Carneiro Lopes nadava, voava de asa delta, surfava, lutava judô, cantava, praticava hipismo, esquiava, fazia pesca submarina, jogava futebol, cantava e tocava bateria e violão.

Pepê fez os primeiros sanduíches naturais do Rio, que inspiraram os sanduíches de praia de todo o Brasil. Teve uma banca de revistas usadas. Mas teve mesmo a famosa Barraca do Pepê, de produtos naturais, na Barra da Tijuca.

Pepê era atrevido, múltiplo, democrata, ambientalista, era o que o jovem do seu tempo queria ser. Nasceu em 1957, brilhou nas décadas de 70 e 80 e morreu em 1991, aos 33 anos, ao bater em um morro no campeonato de voo livre no Japão.

Por que falar de Pepê agora em meio à pandemia? Porque as farsas do mundo ilusório dos surfistas voltaram a ser abordadas pelos próprios surfistas, enquanto se disseminam notícias sobre a propagação de preconceitos em quase todos os esportes.

Falar de Pepê é tratar de um jeito de ver o mundo, com referências que se espalharam a partir do esporte e que foram sendo depois massacradas pela desconstrução de boas condutas universais.

Não é saudosismo. O mundo de Pepê não existe mais. O que existe hoje é o mundo dos filhos de Bolsonaro, da exacerbação do racismo no futebol, da perseguição a atletas progressistas.

E ao redor desses reaças há um mundo amorfo, inerte, parado, resignado, sem forças e sem saber como reagir.

O antigo mundo da diversidade e das diferenças, em seus amplos espaços de exercício de liberdades, é hoje mais do que ultraconservador, é discriminador, é antigay, antinegro.

É um mundo atrás de dinheiro e de troféus. O mundo criado pelos Pepês, onde prosperaram os valores do surfe e seus significados civilizadores, é hoje um mundo patrocinado que não aceita o diferente.

Não aceita no surfe, no vôlei, no futebol. Nesse mundo, gays não podem admitir nunca que são gays, ou serão expurgados dos ambientes em que brilham.

No mundo reaça de hoje não há mais nem voo livre. É um mundo incapaz até de reinventar um sanduíche, mesmo que seja virtual.

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