O déficit está no Banco Central e não nos gastos sociais
Foto: Agência Basil
O ano de 2021 começou com um tiroteio de notícias alarmantes sobre “déficit”, quebra do país e crescimento brutal da dívida pública.
O objetivo desse arsenal “da escassez”, que distorce o que de fato está produzindo escassez em nosso rico país, é convencer a população sobre a necessidade de aprovar mais medidas de interesse do mercado, como cortes de gastos sociais, contrarreformas e privatizações.
Neste breve artigo, mostro algumas das flagrantes distorções existentes em tais notícias e aponto que o “déficit” está no Banco Central, e não nos gastos sociais, indicando que a reforma urgente que precisamos é a reformulação da política monetária suicida que vem sendo praticada pelo Banco Central.
O primeiro discurso de “escassez” veio na primeira semana do ano, quando o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) disse que “O Brasil está quebrado. Não consigo fazer nada”. Tal declaração não tem o menor fundamento ou sequer respaldo em dados oficiais. Há vários anos temos mantido mais de R$ 4 trilhões em caixa e, atualmente, possuímos quase R$ 5 trilhões disponíveis: R$ 1,289 trilhão na conta única do Tesouro Nacional, R$ 1,836 trilhão em reservas internacionais, R$ 1,393 trilhão de sobra de caixa dos bancos parados no Banco Central rendendo juros somente aos bancos, às custas do povo!
Além disso, tivemos superávit de mais de US$ 50 bi na balança comercial em 2020 e possuímos várias outras fontes potenciais de recursos, por exemplo, a tributação de grandes fortunas e sobre a distribuição de lucros a banqueiros e grandes empresários, entre várias outras fontes.
Apesar das imensas riquezas existentes no país, temos sido submetidos, historicamente, a inaceitável cenário de escassez, que aprofundou ainda mais a partir de 2014, devido à crise fabricada pela política monetária do Banco Central.
Em janeiro de 2016 já denunciávamos que o Banco Central estava “suicidando” o Brasil.
Naquela época, qualquer pessoa atenta às finanças nacionais poderia perceber que a crise estava sendo armada por uma combinação mortal de instrumentos operados pelo Banco Central: (1) elevação da taxa básica Selic para 14,25%, permanecendo nesse exagerado valor por mais de um ano, juntamente com (2) o enxugamento de cerca de R$ 1 trilhão (valor próximo a 20% do PIB na época), gerando escassez brutal de moeda da economia e, consequentemente, elevação dos juros de mercado para patamares insustentáveis, além do (3) gasto de dinheiro público para remunerar esse trilhão a essas altas taxas.
O prejuízo do Banco Central em 2016 foi de R$ 250 bilhões, o qual foi transferido ao Tesouro Nacional! Não há economia que aguente!
O PIB despencou cerca de 7% em 2015-2016 e segue estagnado.
A dívida pública do governo federal cresceu R$ 817,04 bilhões nesses dois anos e, se computarmos o estoque de títulos em poder do Banco Central, o crescimento foi de R$ 1,222 trilhão!
Milhões de empresas quebraram e o desemprego bateu recorde em 2015. As pequenas empresas foram as mais atingidas, mas até mesmo as grandes foram afetadas.
A saída da Ford do Brasil está relacionada a essa crise fabricada, pois os elevadíssimos juros de mercado (que resultam da política monetária do Banco Central) dificultaram a comercialização de veículos e derrubaram os lucros do setor desde 2014, conforme dados do Banco Central divulgados recentemente.
Só os bancos seguiram lucrando cada vez mais, pois os mecanismos que produziram a crise a partir de 2014 transferiram centenas de bilhões ao setor financeiro, ao mesmo tempo em que provocaram a elevação da dívida pública e o rombo nas contas públicas, como explicado em recente no vídeo da campanha É hora de virar o jogo.
Essa crise fabricada desde 2014 tem servido de justificativa para a aprovação de medidas extremamente nocivas à sociedade e à economia brasileira, como a Emenda Constitucional 95, as reformas Trabalhista e da Previdência, as insanas privatizações e um verdadeiro festival de propostas de emendas à Constituição: PEC 186, 187, 188, 438, todas com o mesmo viés: redução de investimentos e patrimônio público e aumento dos ganhos para o setor financeiro e grandes corporações.
A pauta agora é desmontar a estrutura do Estado com a PEC 32, privatizar “tudo” e criar gatilho automático para cortar salários de servidores e outros gastos toda vez que a dívida exigir mais recursos!
Tais compromissos foram assumidos pelo presidente Bolsonaro e o banqueiro que ocupa o Ministério da Economia em reunião que ilustra a ditadura do capital instalada no Brasil.
A desculpa usada para esse ataque brutal à estrutura do Estado, ao nosso patrimônio público e aos serviços prestados à população tem sido o fato de que o déficit nas contas do governo central alcançou R$ 743 bilhões e a dívida pública do governo federal disparou e cresceu R$760 bilhões!
Na verdade, o déficit nas contas do governo central tem sido provocado pela utilização de recursos que poderiam ser gastos com o pagamento de despesas correntes para o pagamento de gastos com a dívida pública.
Se os recursos excedentes não fossem sugados pela chamada dívida e seus mecanismos, em especial a remuneração da sobra de caixa dos bancos, não existiria tal “déficit”.
O gasto que mais cresceu em 2020 foi com a chamada dívida pública nunca auditada, que consumiu R$ 1,383 trilhão do orçamento federal pago em 2020.
Por sua vez, o crescimento da dívida em R$ 760 bilhões em 2020 se deve principalmente ao gasto com juros, que na realidade foi muito superior aos R$ 352 bilhões contabilizados como “juros”.
Em estimativa ultraconservadora, o gasto efetivo com juros da dívida teria ficado em no mínimo R$ 515 bilhões. Outros R$ 58 bilhões de títulos foram emitidos para dar garantias aos bancos, que se negaram a emprestar às micro, pequenas e médias empresas sem tais garantias, apesar de terem recebido R$1,2 trilhão de liquidez!
O aumento da dívida externa em R$ 77,77 bilhões foi outro fator de crescimento da dívida em 2020, devido à alta do dólar e a emissão de vários bilhões de dólares em títulos da dívida externa, apesar de possuirmos elevadas reservas internacionais!
Além de tudo isso, os novos títulos emitidos se destinaram ao pagamento de dívida anterior, alimentando o Sistema da Dívida.
Em 10 anos, o Tesouro Nacional gastou quase R$ 3 trilhões para financiar o Banco Central. É evidente que o ralo das contas públicas está localizado nos injustificáveis privilégios ao setor financeiro, viabilizados pela política monetária suicida do Banco Central, que quer ficar “independente” para eternizar essa política que amarra o Brasil. Aí está o rombo e a reforma que precisamos!
Maria Lúcia Fattorelli é coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida e integra a Comissão Brasileira Justiça e Paz, organismo da CNBB. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.