Partos*
Arte: Ricardo Machado
Arte: Ricardo Machado
O lançamento de nova publicação é muitas vezes comparado a um parto. Uma coisa difícil e demorada que geralmente acaba com os “pais” aliviados, contentes, mas diante de uma nova angústia: o recém-nascido se cria ou não se cria? Esta preocupação é menor quando a família tem dinheiro, mas nem as grandes empresas de comunicação (o que não é o caso dos geradores desta criança que você tem nas mãos) estão livres de ver a sua alegria durar pouco. Alguém aí bata na madeira.
Outra comparação que cabe é a do nome. As publicações, como os bebês, muitas vezes só recebem o seu nome definitivo quando estão – com perdão da imagem – no túnel, prontas para entrar no mundo. Durante toda a gestação o nome é discutido e nenhum agrada a maioria e o resultado é que por pouco o jornal não sai com “Depois a gente vê” no cabeçalho.
Pelo menos no caso das novas publicações não existe aquela sogra insistindo que o nome deve ser Egberto, em homenagem a algum antepassado importante, ou Gracinda, para agradar a alguma tia rica. Mas a controvérsia é a mesma. No caso desta publicação, pelo que me contaram, foi difícil encontrar um nome e só depois de muita discussão em que vários foram sugeridos, debatidos, defendidos, ofendidos e abatidos – inclusive, parece, “Egberto” – chegou-se a um consenso. Longa vida para o “Extra Classe”.
A analogia do lançamento de jornal/parto tem outro sentido. A fase de preparação da nova publicação costuma dar mais prazer do que o resultado final, na mesma proporção em que um ato sexual é melhor do que um parto. Falo por experiência pessoal. Não de partos, que só conheço de ouvir falar, mas de longas e movimentadas reuniões planejando jornais, revistas e livros que não deram certo. Participei de várias – mesmo porque a maioria era lá em casa. Eram reuniões tão divertidas que o fato de nunca darem em nada era um detalhe menor.
Entre a concepção e o nascimento sempre havia uma interferência – da falta de dinheiro ou de outras das tantas chateações que atendem pelo nome de realidade – que nos fazia abortar o projeto. Mas falar no que íamos fazer de certa forma substituía fazer. No fim só procurávamos pretextos para nos reunir e exercer nossa inconformidade – com o marasmo da província, com as limitações das publicações tradicionais ou com as frustrações daquele tempo.
“Paradoxalmente, durante a ditadura havia o que hoje não há mais, uma imprensa alternativa que chegava a poucos, mas chegava, e era alternativa”.
O tempo era o da ditadura mal disfarçada que censurava a imprensa e tentava controlar o pensamento. Não conspirávamos contra o regime, mas tentávamos manter a inteligência viva, no caso pelo método boca-a-boca. O que se fazia então era testar a fronteira do permitido. Paradoxalmente, durante a ditadura havia o que hoje não há mais, uma imprensa alternativa que chegava a poucos, mas chegava, e era alternativa.
Não se podia escrever muito mais nos jornais pequenos do que deixavam escrever nos grandes mas as entrelinhas eram maiores e a simples existência de publicações semiclandestinas, independentes de esquemas comerciais, com sua constante ameaça de irreverência e contestação cifrada era bastante para incomodar o regime e animar os inconformados. Mesmo os que, como nós, falavam mais do que faziam.
Na verdade, chegamos a fazer, uma vez. O protótipo do jornalzinho malcriado que vivia testando o perímetro do permitido era o “Pasquim”, começado por, entre outros, um gaúcho radicado no Rio, o Tarso de Castro.
O sucesso do “Pasquim” nos inspirou a lançar aqui uma coisa parecida, mais coisa do que parecida. Chamava-se “Pato Macho” (batizado pelo Armando Coelho Borges, que escrevia no jornal como “Harry Sabugosa”, e que descobriu o nome numa história de velhas publicações gaúchas). Sua pretensão: ser uma folha semanal de chistes e facécias sobre e para uma certa sociedade porto-alegrense, que não gostou das piadas. Tanto que a partir do segundo número tivemos a visita semanal de dois simpáticos censores da Polícia Federal, preocupados menos com a estabilidade do regime do que com a suscetibilidade de alguns nomes locais.
Os censores riam muito do que liam, deixavam publicar quase tudo e pediam muitas desculpas. A nossa cria teve mais sucesso com os censores do que com o público. Durou só quinze semanas. Mas deixou sua marca, além das dívidas. Até hoje ainda me perguntam sobre ele. Não faz muito fizeram um seminário sobre imprensa alternativa no Rio Grande do Sul e o “Pato” foi discutido com a maior seriedade. Cedo ou tarde, tudo vira tese acadêmica ou nostalgia.
No fim, o mais importante foi que durante uns nove meses nos reunimos, rimos muito, brigamos um pouco e fomos solidários, entusiasmados e, pelo menos na nossa própria opinião, brilhantes. O parto foi só um acidente.
*A crônica Partos foi escrita por Luis Fernando Verissimo para a primeira edição do Extra Classe, que circulou em março de 1996. A republicação do texto nesta edição comemora os 25 anos de circulação do jornal.