OPINIÃO

Comorbidade e companhia

Por Fraga / Publicado em 18 de maio de 2021

Comorbidade e companhia - crônica de Fraga - Ilustração de Rafael Sica

Ilustração: Rafael Sica

Ilustração: Rafael Sica

Conforme as épocas e as situações, nosso vocabulário enriquece ou empobrece. No caso da pandemia, adoeceu bastante: quantas palavras adoentadas e doentias se incorporaram à linguagem cotidiana, né mesmo? Uma até se incorporou aos corpos, onde já coabitava mas muito tímida não ousava dizer seu nome. O povo a chamava de probremas; o médico, todo íntimo da criatura, a trata como Comorbidade.

Na verdade, ninguém nem precisava chamar: ela vem sozinha. Ou vem das burrices que cometemos com o organismo durante a vida ou já vem na herança genética. Que é, ninguém ignora, é aquilo que nossos antepassados, não tendo outra coisa valiosa para legar aos descendentes, deposita lá no dna familiar. Assim, enviado pelo sedex dos embriões às novas gerações, se perpetuam os males e defeitos congênitos. Heranças que ninguém tá livre.

De um jeito ou doutro, a Comorbidade chega e se instala no saudável playground corporal que no início todos parecemos ter. Às vezes ela se comporta como hóspede temporário numa das muitas dependências dessa pensão ou hotel anatômico. Noutras, desde logo, assume residência fixa, cep definitivo. Seja como e onde for, a gente não liga muito porque parece que a Comorbidade é apenas ela e só ela.

Nada disso: a Comorbidade é um ímã de doenças, ela atrai, reúne e cria um convívio coletivo de diferentes problemaços de saúde. Nem notamos, mas lá no nosso interior se cria uma verdadeira associação de males e doenças. Que tem atividades sociais pelos sistemas e órgãos, como piqueniques onde células são manjares, bailes com tumores, passeios por isquemias e mialgias, até chegar à montanha-russa dos estertores.

Por essa capacidade de agregar infortúnios no organismo e desgraceiras na fisiologia, a Comorbidade se acha a tal: anfitriã das insuficiências e deficiências, organizadora dos sintomas, uma gerente do sofrimento. Ela sabe tudo dos diagnósticos e prontuários, comanda as alterações físicas e estabelece com precisão a cronologia da decadência de cada um.

Além disso, é mestre em dosar o açucareiro nas veias, glóbulos brancos na leucemia, cabelos na alopecia, tremores no Parkinson e lembranças no Alzheimer. Tudo sem usar disfarces, insidiosa que é.

E agora, com a covid, a Comorbidade foi promovida: é fator de prioridade pra vacinação. Modesta, diz que nada mais é que sua colaboração involuntária para salvar vidas. Como se sabe, a Comorbidade é prima não muito distante da Morbidez, que adora a pulsão de morte e tem repulsa pelos impulsos vitais.

Parodiando o poeta português: a vida vale a pena, mesmo que a Comorbidade não seja pequena.

 

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