Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
A ditadura não caiu apenas pela ação institucional de partidos e dos que detinham representação no Congresso. Caiu também pela militância de artistas, da imprensa dita alternativa e de líderes religiosos e comunitários que estiveram ao lado das pessoas comuns.
É uma lição permanente e cada dia mais viva, em tempos de autoritarismo e genocídio. O povo arrastado às ruas contra a ditadura seguia muitas vezes o caminho aberto por artistas.
Foi o que Chico Buarque começou a (re)fazer agora. Chico mandou um recado aos militantes de Twitter, Instagram, Youtube e Facebook. Está encerrada a etapa dos manifestos e dos vídeos com protestos virtuais.
Sem as ruas, disse Chico, a reação é incompleta ou nem há reação. Chilenos, argentinos, peruanos, colombianos, equatorianos nos alertam para essa realidade há meses. Regimes antidemocráticos temem as ruas e somente as ruas.
Chico foi ao centro do Rio, na passeata de sábado passado, porque tinha um compromisso com a sua história e uma mensagem a transmitir: sem rua não há política.
Não há vitalidade do Congresso, nem do Supremo e dos organismos de vigilância da democracia sem o suporte das ruas.
O artista quase anônimo e a celebridade são personagens consagrado nas lutas pelas liberdades desde o maio de 68 em Paris. Hoje, é impossível pensar na resistência ao genocídio sem os amigos de Chico.
E, com os amigos de Chico, devem seguir juntos os artistas das novas gerações, tão ativos como frequentadores de lives e abaixo-assinados na internet, mas ainda tímidos como militantes do mundo real.
Chico comemorou 77 anos nas ruas, no dia do aniversário. Em outros tempos, teria se escondido em Paris, para onde fugia para não ouvir as felicitações. Desta vez, decidiu não se esconder.
Enfrentar o coronavírus é o custo a ser pago pelos resistentes. A Indignação virtual deve olhar para o exemplo dos artistas que levaram para as ruas de Porto Alegre as performances antigenocídio dos dias 29 de maio e 19 de junho.
É preciso sair de casa, como saíam contra os torturadores. A Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo fez um levantamento de ações de professores, alunos e artistas na ditadura. Relembrou atividades que mobilizaram democratas dentro da escola.
A escola acolhia e mobilizava a resistência e devolvia vitalidade às ruas. A história das desses resistentes está contada em relatórios da Comissão da Verdade.
O que Chico está dizendo é que não basta fazer canções de protesto, é preciso carregar nas costas o peso e a responsabilidade de caminhadas ao lado de quem se dispõe a caminhar.
Resistir é ir muito além da produção artística. É fazer o que fizeram os que subiram em palanques com os políticos nos atos pelas Diretas, nos anos 80.
Subiram e cantaram, mesmo os que foram presos e torturados e os que se exilaram para escapar de perseguições e desaparecimentos.
Resistência cultural, em tempos graves, é mais do que produção de arte contra o autoritarismo e o enfrentamento da censura. É ir muito além da produção engajada no cinema, teatro, na literatura, televisão, música, artes plásticas.
A participação dos artistas na reconstrução da democracia brasileira está registrada por documentários, pelo jornalismo, por teses acadêmicas e pela própria arte.
É relevante para a compreensão do que aconteceu até o aniquilamento do governo de exceção, das perseguições, da tortura, da censura, das cassações e dos assassinatos.
Os artistas do século 21, diante de um cenário nunca enfrentado antes, precisam construir a história da resistência hoje, que somente será possível se não for apenas virtual.