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Encontrar um caminho para além da política polarizada do nosso tempo exige levar em consideração o mérito. Entretanto, a meritocracia de hoje endureceu, tornando-se uma aristocracia hereditária. É o que diz Michael Sandel, respeitado filósofo de Harvard. Em sua obra A Tirania do Mérito: O que aconteceu com bem comum, ele faz uma análise reveladora da perversa injustiça de nossa sociedade, movida por míope e desonesta crença na noção de mérito. Oferece uma crítica profunda da meritocracia que deteriorou nosso espírito de comunidade e respeito mútuo.
Diz que “estes são tempos perigosos para a democracia”, considerando o aumento da xenofobia e pelo crescente apoio público de figuras autocráticas que testam as normas democráticas. Adverte que tais apoios representam um protesto pela exclusão econômica resultante da globalização, mas, também, é uma reprimenda à abordagem tecnocrata da política, que é insensível aos ressentimentos de pessoas deixadas para trás pela exclusão econômica e cultural.
Sandel nos conduz a pensarmos “o que deu errado na nossa vida? O que nos trouxe a este momento político polarizado e rancoroso? Se contratar um empregado com base no mérito era uma prática aceitável, o que poderia estar errado com a meritocracia? Quando exatamente o mérito passou a ser tóxico e como isto aconteceu? De forma geral, sua reflexão prossegue e se aprofunda em torno como a meritocracia corroeu o bem comum, levando a arrogância dentre os vencedores e à humilhação entre aqueles que fracassaram.
Nas últimas cinco décadas, a narrativa do mérito e do merecimento tornou-se central no discurso público e no campo educacional, especialmente no ensino superior enquanto espaço reservado para os melhores. Um aspecto da meritocracia é o discurso das responsabilidades pessoais e transferir os riscos para os indivíduos, no caso, os jovens estudantes, livrando governos e empresas de suas co-responsabilidades. O outro aspecto é a retórica da ascensão, a promessa de que as pessoas que trabalham duro e seguem as regras, merecem ascender até onde os seus talentos e sonhos os levarem.
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Nesta lógica, oportunidade significa adquirir formação educacional e habilidades para efetivamente competir no mercado. Sandel adverte que a tirania do mérito é resultado não só da retórica da ascensão, mas consiste em um conjunto de comportamentos e circunstâncias, que agrupadas, tornaram a meritocracia tóxica. Inicialmente, pelas desigualdades estruturais; segundo, por insistir que o diploma técnico ou universitário é o principal caminho para um emprego respeitável e uma vida decente e, terceiro, pela insistência de que problemas sociais e políticos são melhor resolvidos por especialistas com educação de nível superior e valores neutros, corrompendo a democracia e o poder dos cidadãos comuns.
E é justamente esta perspectiva meritocrática que permeia as reformas e ideologias reformistas nas últimas três décadas no Brasil, inclusive a atual BNCC e reforma do novo ensino médio. Estão baseadas na pedagogia das competências e habilidades individuais dos estudantes, em projetos de vida e protagonismos juvenis, educação empreendedora e escolhas de itinerários próprios e desresponsabilização do Estado e da sociedade para com o futuro destes estudantes. Assim, a “BNCC propõe a superação da fragmentação radicalmente disciplinar do conhecimento, o estímulo à sua aplicação na vida real, a importância do contexto para dar sentido ao que se aprende e o protagonismo do estudante em sua aprendizagem e na construção de seu projeto de vida”.
Meritocracia pode ser compreendida como um sistema de hierarquização e premiação baseado nos méritos pessoais de cada indivíduo. O poder do mérito está assentado na suposição de qualidades individuais, resultado dos seus esforços e dedicações. Foi um britânico, em 1958, chamado Michael Young, que já previu a arrogância e o ressentimento que emergem com a meritocracia. A classificou como uma receita de discórdia social e desaconselhou como um ideal a seguir.
Ideologia dos privilégios
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Trata-se de uma ideologia dos privilégios baseados no mérito onde os jovens estudantes que mais estudarem, trabalharem e se dedicarem, consequentemente, terão mais renda, mais prestigio, tudo graças aos próprios esforços, baseados na inteligência e capacidade de cada um. Por isto você precisa ter seu projeto de vida e não um projeto comum de nação, você precisa do seu itinerário, não uma sólida educação básica de qualidade para todos, você precisa pensar seu trabalho, não uma política de dignidade de trabalho e renda.
Para jovens que se preocupam com salários estagnados ou em declínio, trabalho intermitente, terceirização, informalidade, desigualdade e medo de que imigrantes irão roubar os empregos, as elites governantes oferecem uma recomendação animadora: faça uma formação técnico-profissional ou faculdade, mesmo em EAD, paga por sua conta. Prepara-se para competir e vencer na economia global. Só quem tentar, conseguirá.
E onde está a ideologia não revelada? Justamente no “não dizer” que mesmo que você faça tudo isto, você não terá nenhuma garantia que será o vencedor e que prosperará, pela simples razão de que o sistema sócio metabólico do capital (capital-trabalho e Estado) são muito mais complexos e poderosos que qualquer esforço individual. Nenhum jovem ou estudante se salvará sozinho neste mundo, muito menos no Brasil, onde a desigualdade e o racismo estrutural matam sonhos e inviabilizam futuros da grande maioria.
Jovens protagonistas em uma globalização fracassada
Mas, para os especialistas em educação, que descontextualizam a educação da totalidade da realidade, os jovens protagonistas poderão escolher entre itinerários de aprofundamento de estudos ou itinerário técnico-profissional que lhe darão competitividade e inserção neste mercado esfacelado pela globalização fracassada, pela economia estagnada, pela crise política instaurada e pelo aumento da desigualdade, onde os 1% mais ricos concentram mais riqueza que os 50% mais pobres.
Uma breve análise da qualidade do emprego dos jovens já identificamos que a dificuldade de inserção no mercado de trabalho hoje aumenta a propensão do jovem a aceitar uma ocupação de pior qualidade. Essa tendência é preocupante, pois, assim como episódios no desemprego no início da trajetória profissional, o ingresso no mercado de trabalho pelo emprego informal, tende a comprometer a trajetória profissional dos jovens por muito tempo. Para se ter uma ideia da gravidade do problema, durante o período 2012-2018, em média, 53% dos jovens de 15 a 29 anos entram no mercado de trabalho por meio do emprego informal.
Abandono escolar e geração de renda
O retorno massivo de adolescentes e jovens nas ruas e sinaleiras vendendo balas ou pedindo ajuda evidenciam que são justamente eles os mais afetados em momentos de crise como a do Brasil, que perdura desde 2015, acentuada pela pandemia. Os jovens foram os brasileiros mais impactados pelo aumento de desemprego que aumento em 2020. pelo trabalho informal e pela redução de renda nestes últimos anos. Basta conferir estudos do IBGE, FGV-Socail e o próprio IPEA.
A principal causa do abandono escolar (40%) é a necessidade de trabalhar e geração de renda. A evasão escolar na pandemia – por acesso precário ou nulo ao ensino virtual – está se dando por vários fatores, que vão desde a falta de conectividade e equipamentos, até a necessidade de garantir o sustento de famílias devastadas pelo desemprego, pela fome e pelas mortes e sequelas da Covid-19, bem como pela ausência de políticas públicas robustas de transferência de renda.
Reformistas reincidentes
Enquanto escolas, estudantes, professores e pais se empenham para fazer frente aos novos desafios emanados da pandemia – como a garantia do direito à educação e aprendizagem de todos estudantes -, os reformistas reincidentes, insistem em dar continuidade e implementação a uma reforma curricular, sem prévia formação de professores, sem um plano de investimentos e de condições para sua operacionalização. Trata-se de um duplo erro: a reforma não resolverá os problemas causados pela pandemia e desorganizará o que está funcionando apesar do contexto.
A questão que precisamos discutir coletivamente é como implementar mais uma reforma com as escolas fechadas desde março de 2020, sem discussão com estudantes – sujeitos principais da reforma – e com professores preocupados e focados com a transposição das aulas presenciais para plataformas. E pior, a pandemia continua com, uma média, de 2 mil mortes por dia e vacina a conta gotas.
Tudo indica que os especialistas estão apostando na desmobilização das comunidades escolares por conta da pandemia para “passar a boiada”. Governos buscam manter o controle do debate público da educação, e sabem que, enquanto a população estiver mais preocupada com a própria sobrevivência, os estudantes não criarão obstáculos à faraônica reorganização escolar que está em curso, que impactará por toda a vida os atuais estudantes, especialmente dos da escola pública e de periferia.
Deterioração da dignidade do trabalho
A era da meritocracia contribuiu na deterioração da dignidade do trabalho enquanto criador de vida. Trabalho é tanto econômico quanto cultural. É um modo de ganhar a vida e, também, é fonte de reconhecimento e estima social conclui Sandel. Portanto, reformas educacionais desintegradas de políticas de garantia do direito ao trabalho e renda aos jovens configura uma desonestidade intelectual, pois nos cabe desenvolver nos estudantes a capacidade de ler e entender o mundo e o mercado de trabalho no qual irão inserir-se. Induzir os estudantes a uma competição individualista é induzi-los ao fracasso e a frustrações existenciais irreparáveis.