Foto: Sidinei Brzuska/ Acervo Pessoal
Um sujeito entrou em uma loja em Porto Alegre e anunciou o assalto. Roubou o dinheiro do caixa, mais alguns pertences da vítima e se mandou a pé. O proprietário acionou a Brigada e os PMs avistaram dois suspeitos a algumas quadras dali.
Um deles, o Nelinho, estava com a res furtivae. A vítima identificou o assaltante. Sobre Nelinho, disse, apenas, que ele era um “flanelinha” das redondezas. Registrado e homologado o flagrante, a preventiva foi decretada. No outro dia, os presos foram conduzidos à Audiência de Custódia.
O sujeito que entrou na loja tinha uma atadura no braço e alguns arranhões no rosto. Perguntado sobre a origem dos ferimentos, disse que eram coisa de “briga de rua”.
O juiz pede, então, a presença do segundo preso. Há uma demora até que, finalmente, Nelinho é trazido, carregado por dois PMs. Ele não consegue ficar em pé. Cabeça enfaixada, rosto deformado, muito sangue pelas roupas sujas e rasgadas.
Com esforço, se equilibra na cadeira. “O que aconteceu contigo”, pergunta o magistrado, “os policiais te bateram?” Foi quando Nelinho contou que viu quando o assaltante saiu correndo. “Conheço o dono da loja, dotor, é gente boa. Então, fui atrás do cara.” Conseguiu alcançar o assaltante, entraram em luta e ele recuperou o produto do roubo. Nesse momento, os policiais chegaram e os dois foram presos.
No Presídio Central, ambos foram colocados em uma cela com todos os presos daquele dia. Daí o assaltante contou o que tinha ocorrido, o que fez com que os outros presos espancassem Nelinho até ele desmaiar, “prá aprender a não dar uma de polícia”.
Outro assalto em Porto Alegre, em um bar, foi praticado por quatro caras. Três entraram no estabelecimento e um ficou aguardando no carro. O veículo foi descrito pelas vítimas e a Brigada começou a busca.
O carro foi avistado na zona sul e a perseguição teve início. Lá pelas tantas, nas proximidades de uma avenida movimentada, os assaltantes largaram o veículo e correram em diferentes direções para escapar. Os PMs foram atrás e houve troca de tiros. Ao final, quatro suspeitos foram presos. Mesmo quadro de gravidade, prisão preventiva decretada.
No outro dia, os quatro são apresentados ao juiz em Audiência de Custódia. O magistrado percebe que três dos detidos ficavam juntos, se apartando do outro. Curioso com a postura, o juiz pergunta: “Há alguma bronca entre vocês?”. Então, um dos presos explica: “Dotor, foi nóis que meteu o bar, mas esse aí (apontando para o quarto) a gente não sabe quem é”. O quarto preso era o Dionísio. No depoimento ao juiz, ele contou que estava na parada, esperando o ônibus, quando começou o tiroteio. “Eu é que não ia ficar ali, de bobeira. Então, corri”, disse. Talvez por ter corrido, talvez por ser negro, Dionísio, trabalhador, pai de família, foi preso.
O outro caso envolve uma barreira da Polícia Rodoviária. Uma caminhonete dessas que valem uma fortuna chamou atenção dos policiais.
Checando os dados, descobriram que o carro era “clonado”. Havia dois homens no veículo. Na revista, os policiais encontraram dois revólveres e uma carteira com dinheiro e vários cheques de pessoas diferentes. Não deu outra: preventiva.
Na Audiência de Custódia, o juiz entrevista o motorista, um senhor uruguaio. Fazendeiro, havia fechado a venda de gado para vários clientes. As armas eram suas e estavam registradas. A caminhonete estava irregular mesmo, razão pela qual pagou fiança de R$ 80 mil. O segundo preso era o Binho, um operário bem quisto na região. Naquela tarde, foi para a estrada tentar uma carona. Depois de muito esperar, parou aquela caminhonete. Talvez o motorista tenha perguntado: “¿Qué tan lejos vas?” Nenhum deles poderia imaginar que iriam para a prisão.
Direito básico
Os nomes são fictícios, mas as histórias são reais e me foram contadas por Sidinei Brzuska, um dos magistrados que honram o Poder Judiciário. Nelinho, Dionísio e Binho foram soltos graças ao fato de terem sido apresentados a um juiz, porque há coisas que um juiz nunca saberá se apenas ler um processo. Em todo o Brasil, muitos outros casos do tipo ocorrem todos os dias. As histórias servem para entender por que as Audiências de Custódia são tão importantes. O mecanismo é um direito básico definido pelo art. 7.5 do Pacto de São José da Costa Rica que assinala:
Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.
Sem as Audiências de Custódia, pessoas presas em flagrante com preventiva devem aguardar vários meses “na tranca” até que a primeira audiência ocorra. Uma espera que é muito funcional às práticas de tortura e que traduz violência absurda. Como não poderia deixar de ser em um país onde há tantas pessoas dispostas a sustentar o absurdo, as Audiências de Custódia têm sido atacadas pela extrema-direita e demonizadas pelo clã Bolsonaro. Este texto serve também para lembrar que as Audiências de Custódia seguem suspensas no RS, desde o início da pandemia.